“Quem disse que a fotografia tinha de ser fácil?”

Lisboa nunca tinha feito parte da rota de Martin Parr. Até agora. A recém-inaugurada Barbado Gallery, exclusivamente dedicada à fotografia, escolheu entrar na obra do fotógrafo britânico com um pé na praia.

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Martin Parr: "Diria que a busca do lazer pelo mundo ocidental é a minha maior motivação fotográfica." Enric Vives-Rubio

É difícil não ver uma fotografia de Martin Parr. Elas entram-nos pelos olhos dentro. Mesmo na confusão da inauguração daquela que se apresentou como a primeira exposição individual do fotógrafo britânico em Portugal (não é – expôs em Lisboa, em 1998, "West Bay", Galeria Palmira Suso). Mas, na verdade, quem entrasse na Barbado Gallery, em Lisboa, durante a recente apresentação à imprensa ouviria a voz grossa de Parr ao longe, num sotaque muito cerrado, a sobrepor-se às suas imagens, a confundir-se com elas.

Parr (e a sua obra) é daqueles fotógrafos capazes de gerar grandes amores e ódios figadais. Fala alto mesmo que lhe estejam a sussurrar uma pergunta - fala alto, mas mal mexe os lábios finos. A espaços, nota-se ironia e algum enfado (limitou as entrevistas em número e em tempo), ainda que no trato imediato demonstre uma simpatia diplomática. E até uma ou outra ousadia, como quando, no momento de uma fotografia da praxe, impôs como condição que a fotografada saltasse para o seu colo. Ou ainda quando, no retrato para um jornal, decidiu fazer uma pose à super-homem, de pernas abertas e punhos na cintura. É uma excentricidade snob que, afinal, também marca a sua obra, nomeadamente nas séries sobre as praias que começaram em meados dos anos 80, com The Last Resort, o seu primeiro grande projecto a cor. As praias na obra de Martin Parr (Epsom, 1952) são tantas e tão omnipresentes que dão para fazer um percurso retrospectivo e, a partir daí, compreender outros caminhos por onde andou. Foi isso que fez João Barbado, ao escolher com o fotógrafo britânico 25 imagens entre as séries mais antigas até obras captadas já este ano. E daí resultou A Place in the Sun - Martin Parr’s Beach Photos 1985-2015 (até 11 de Novembro), que mistura fotografias muito conhecidas (e esgotadas no mercado coleccionista) com obras pouco vistas. Certo é que todas tiveram o mesmo cuidado com os pormenores, na parede e fora dela – Barbado andou num corropio a borrifar a galeria com um frasco de fragâncias estivais. Conversa numa manhã de calor abafado com cheiro a bronzeador.

Porque é que decidiu concentrar-se nas praias para apresentar a sua primeira exposição individual em Portugal que é, ao mesmo tempo, uma pequena retrospectiva da sua obra? O que é que o fascina tanto nestes lugares?
Esta não é a minha primeira exposição individual em Portugal. Já fiz uma exposição em Braga. Mas é a primeira em Lisboa que, de todas as capitais da Europa e por razões insondáveis, era a única onde ainda não tinha mostrado o meu trabalho. As praias têm sido para mim um tema recorrente. Exploro-as de maneiras diferentes. São como um laboratório social. Quando começo a fotografar num qualquer lugar do mundo o meu ponto de partida são as praias. Acho que são uma óptima maneira de começar a olhar para um lugar. Há tantas e tão diferentes que nunca é aborrecido. É um projecto em permanente construção.

Mal chega a um lugar começa logo a procurar a costa, é isso?
Não, nem sempre. Hoje, por exemplo, está um dia quente mas só poderia ir fotografar às oito da manhã, quando não há ninguém. E isso não me interessa. É preciso tempo e eu estou aqui numa visita rápida.

As suas fotografias estão sempre cheias de pessoas.
Adoro fotografar pessoas. Somos infinitamente fascinantes.

Fotografar na praia pode ser um exercício arriscado? Como tem lidado com isso?
Tornou-se mais arriscado recentemente. Há 30 anos a noção de pedofilia, por exemplo, não estava no pensamento das pessoas. É mais difícil hoje, sem dúvida.

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Mar del Plata, Argentina, 2014. Da série Life’s a Beach © Martin Parr/Barbado/Magnum

Mas fala com as pessoas antes de as fotografar?
Não tenho nenhum método estipulado. Mas também falo com as pessoas, provavelmente até mais noutras situações do que na praia. Não sou purista quanto a isso nem tenho nada contra falar antes de fotografar. O problema é que trabalho muito em países estrangeiros onde não domino a língua. Por vezes, tenho um assistente local que traduz e isso simplifica as coisas.

E como reagem à presença de um desconhecido com uma câmara?
Em geral, as pessoas sentem-se lisonjeadas por estarem a ser fotografadas. Diria que uma em cada quatro é capaz de rejeitar. Haverá sempre pessoas a dizer “não, não me tire fotografias”. Mas essas são fáceis de descobrir. Normalmente vêm ter comigo muito aborrecidas. Como disse, são uma minoria. Mas quem disse que a fotografia tinha de ser fácil? Gosto do facto de não ser fácil.

Fale-nos das principais diferenças entre fotografar a praia em meados dos anos 80 e agora.
Bem, a moda mudou, mas provavelmente muito menos do que a mudança que ocorreu com os centros comerciais. Na verdade, as praias são eternas. O mobiliário e as lojas podem ter mudado um pouco. Os bikinis estão diferentes e as pessoas têm mais estilo, mas a maior parte das coisas não mudou nada.

Já fotografou nalguma praia em Portugal?
Não, nunca. Já estive aqui algumas vezes mas nunca fotografei a sério. Tenho noção disso e é algo que gostava de corrigir. Estou à espera de ter a oportunidade certa para fazer “o” trabalho de fotografia aqui e mostrá-lo depois. Acho que estou a aproximar-me do meu ponto cego em relação ao resto da Europa.

O turismo global, o exibicionismo, o kitsch e o consumismo são alguns dos temas recorrentes na sua obra. A praia é o lugar ideal para encontrar num só lugar todo este universo?
Sim, as praias têm tudo a ver com o lazer. Gosto de ver as pessoas enquanto procuram esse estado de descontracção. Há muitos anos que ando a olhar para as praias e o turismo, são assuntos que têm estado sempre presentes na minha carreira, embora tenham sido objecto de diferentes capítulos, livros e aproximações. Diria que a busca do lazer pelo mundo Ocidental é a minha maior motivação fotográfica.

E o consumismo?
Também, claro. O consumismo é uma actividade do lazer. Tive uma fase, nos anos 80 e 90, em que fotografei muitos supermercados e centros comerciais.

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Miami, Florida, EUA. 1998. Da série Common Sense, 1995-99 © Martin Parr/Barbado/Magnum

Mas isso chocava-o?
Não, nem por isso. Imagino que num país como Portugal as mudanças têm sido menos acentuadas. Mas parece-me que, ainda assim, tem havido mudanças. E as mudanças são sempre interessantes. Tento responder àquilo que muda. Parte do meu trabalho passa por documentar o mundo em que vivemos para que no futuro possamos olhar para trás e termos algo que recordar. As minhas fotografias dos anos 80 são muito diferentes das que capto hoje. O mundo mudou muito. É preciso que o trabalho fotográfico tenha alguma validade documental. Ao olharmos para estas imagens [na galeria] podemos encontrar boas fotografias. Mas é preciso que elas documentem o mundo. É isso que lhes dá valor. Se se acrescentar a esse valor do documental uma boa fotografia, temos um bónus.

A mudança do preto e branco para a cor em meados dos anos 80 está relacionada com o facto de ter começado a fotografar na praia em trabalhos como The Last Resort?
Sim. Na verdade, esse foi o primeiro grande trabalho que fiz a cor. Foi muito interessante descobrir a praia através da cor.

No texto de apresentação desta exposição Agnès de Gouvion Saint-Cyr afirma que as suas fotografias lhe fazem lembrar quadros de Pieter Brueghel (sempre com muitas pessoas e ocupações do quotidiano). Revê-se nesta associação?
Talvez, ainda não li o texto. E também não conheço assim tão bem os quadros de Brueghel. Mas parece-me uma boa associação. Não sou muito bom a falar de arte. Sou uma pessoa simples com sentido intuitivo e livre acerca do que está certo ou errado.

À partida, o ambiente da praia tem tudo para ser mau para um fotógrafo: excesso de luz, reflexos, areia, confusão…
Isso para mim parece-me tudo bem!

Mas qual é para si o maior pesadelo enquanto fotografa na praia?
Não haver pessoas suficientes. Praias desertas não têm interesse. Quando ia de férias para a Escócia as praias costumavam estar todas desertas. Era bom para fazer caminhadas. Mas tinha de me forçar a fazer férias naqueles lugares porque para fotografar não havia nada de excitante. Aquilo que quero é fotografar praias cheias de gente.

No Reino Unido isso é capaz de ser um pouco difícil…
Não, nem por isso. Num dia quente de Verão as praias enchem depressa. Ao contrário de Portugal, que tem muitos dias seguidos de calor, o tempo no Reino Unido é muito imprevisível. Quando há uma ponta de sol toda a gente sai à rua.

É presidente da agência de fotografia Magnum desde o ano passado e membro efectivo há mais de 25. O que o levou a aceitar agora a liderança da cooperativa?
Não havia mais ninguém para o fazer! É um cargo que tem de ser desempenhado por um fotógrafo da cooperativa e na última reunião percebi que não havia candidatos. Achei que podia desempenhá-lo e avancei. Nomeamos um CEO muito dinâmico que vai ajudar-nos a implementar uma gestão mais empresarial. As mudanças no mercado da fotografia e no mundo editorial são enormes. Ao contrário de muitas agências, felizmente na Magnum temos a cultura e o engenho para seguir em frente, mas temos enfrentado tempos difíceis. Temos que nos adaptar às novas formas de consumir fotografia.

Acha que os moldes em que funciona a agência ainda fazem sentido hoje?
Da maneira como funcionava antes, não, seria redundante. Temos de mudar. Por exemplo, estamos a trabalhar num canal business-to-customer [empresa produtora ou vendedora negoceia com o consumidor final], queremos continuar a apostar na venda de cópias originais de fotógrafos da agência - que tem sido um sucesso -, em projectos de grupo e em parcerias. Temos de procurar formas de nos tornarmos mais sustentáveis. Isso é um desafio meu e do actual quadro de gestão.

A conta de Instagram da Magnum tem quase meio milhão de seguidores…
A sério? Não sabia.

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New Brighton, Inglaterra. Da série The Last Resort, 1983-85 © Martin Parr/Barbado/Magnum

Costuma acompanhar o que lá se publica? Como olha para este universo?
Gosto do Instagram, mas pessoalmente não contribuo nem sigo o que a Magnum lá publica.

Tem alguma conta pessoal?
Não. Só tenho uma página de Facebook que alguém gere por mim. Sabe, sou uma pessoa um bocado antiquada. E, por outro lado, estou sempre sobrecarregado com pedidos de toda a natureza. Mal consigo sobreviver. Por isso fico contente que a Magnum faça posts no Instagram por mim. O meu sentimento em relação aos media sociais é de indulgência. Tenho um site muito completo, actualizado e com muita informação. Invisto muito nele. Não posso ficar atento a tudo o que se passa no Instagram.

O humor, uma faceta muito presente na sua obra, é um género pouco habitual na fotografia de hoje. Porque é que acha que isto acontece? É subvalorizado?
É? Não sei. As pessoas são engraçadas. O mundo é engraçado. E se não rirmos, choramos. Aquilo que quero é reflectir a minha própria sensibilidade nas imagens que tiro. Não me compete fazer juízos de valor sobre as minhas fotografias. Isso é o seu trabalho. Crio imagens divertidas que têm uma mensagem séria acerca das contradições do mundo. Só isso. Não posso verbalizar o que as pessoas acham das minhas fotografias. Isso é com elas. As minhas imagens falam por si, para o bem e para o mal.

A sua paixão por livros de fotografia é muito conhecida. Ainda tem espaço em casa para livros?
Estou a ficar sem espaço, muito depressa. Tenho outro edifício para além da casa, onde já estou a ficar sem espaço também. É um problema. Mas quando se tem um vício como este é difícil parar.

É uma paixão compulsiva.
É como a heroína ou o crack. É mesmo muito difícil parar. Esta tarde vou à procura de livros de fotografia em Lisboa. Portugal é um país interessante. Há livros extraordinários da época do fascismo dos anos 30. E depois há também livros publicados em Angola com muito interesse. Acho que, neste campo, Portugal é um país onde ainda há muito por descobrir.

Que tipo de livros o tem fascinado mais nos últimos tempos?
Uma colecção que comprei no Irão, um país onde é muito complicado encontrar livros, em particular sobre a guerra Irão/Iraque e sobre a revolução. Comprei recentemente uma grande colecção deles, uns 30 ou 40. É inacreditável. Há bons livros e fotógrafos de quem nunca ouvimos falar. Já não há assim tantas histórias escondidas como esta. Recentemente publiquei um livro sobre fotolivros chineses. Chegaremos a um ponto em que nada restará desconhecido.

O volume três de The Photobook - A History (Phaidon, 2014) será o último?
Para já sim, mas quem sabe… Desde que esse livro foi publicado já encontrei outros que mereceriam entrar.

As pessoas costumam mandar-lhe livros?
Sim, muitos, uns bons uns maus (mais maus do que bons). Mas sabe, da mesma maneira que precisamos de má fotografia também precisamos de maus livros de fotografia – vão ajudar-nos a descobrir os bons.

Portugal tem quatro entradas no The Photobook... Recorda-se de algum deles e as razões que os levaram a incluí-lo?
Sim, claro. O Portugal 1934 é um exemplo extraordinário de um livro fascista de propaganda, com uma estética igual ao que se fazia na Rússia e na Itália. Não há grande conhecimento das edições fascistas de propaganda portuguesas, é um mundo ainda um pouco escondido. E há também bons livros contemporâneos, como o de José Pedro Cortes. Há bons fotógrafos jovens em Portugal e fico contente por poder mostrar algum do seu trabalho. Haverá certamente outros bons exemplos, mas tínhamos de cobrir todos os países do mundo e não podíamos mostrar toda a gente. Tivemos de escolher

No ano passado, decidiu pôr em confronto no Museu da Ciência em Londres o seu primeiro grande trabalho de meados dos anos 70, The Nonconformists, com o trabalho de Tony Ray-Jones (1941-1972). Fale-nos da experiência de mergulhar nos arquivos de alguém que foi uma das suas principais influências.
Foi muito interessante olhar para as provas de contacto e descobrir novas fotografias que talvez tenham sido negligenciadas. O que ele tinha de mais forte era a noção de espaço. Dá a sensação de que conseguia fotografar os intervalos entre as coisas e as situações. Foi um bom exercício entrar no mundo dele e encontrar novas fotografias. E, claro, foi uma honra poder mostrar as minhas imagens junto das de Tony.

Ray-Jones também fotografou muito a praia. Pode considerar-se que ele abriu uma porta pela qual também decidiu entrar?
Com certeza. Apesar de ter começado a fotografar praias antes de conhecer o trabalho de Tony Ray-Jones (nunca o conheci pessoalmente) devo muito às imagens dele sobre esse universo. Quando as descobri, fiquei espantado com a habilidade que tinha para lidar com o espaço e isso foi uma coisa que tentei aplicar ao meu trabalho. Foi uma profunda influência e não o nego.

É descrito como uma pessoa de múltiplos talentos. O que é que se sente mais: um fotógrafo, um editor, um curador, um coleccionador de imagens ou um acumulador de coisas?
Vejo-me sobretudo como um fotógrafo. É aquilo que de mais importante faço. Todas as outras actividades, que me dão muito gozo, são um complemento dessa faceta. Mas, ultimamente, tenho dado prioridade à fotografia.

Qual foi a última fotografia que tirou?
Hmmm… Foi uma fotografia de moda no espaço Le Bon Marché, em Paris.
 

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Eastbourne, Inglaterra. Da série Think of England, 1995-99 © Martin Parr/Barbado/Magnum

Nota: Texto corrigido às 12h24, de 16.09.2015. A primeira exposição individual de Martin Parr em Portugal, "West Bay", aconteceu na Galeria Palmira Suso, em 1998, e não em Braga, em 1999 como estava escrito.

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