Quem acha que é deus para não lhe dar ouvidos?

1. Céu de Inverno na Linha Vermelha, aquele horizonte desfocado de quando chove: para eu não ter tanta saudade, disse quem ia ao volante. Linha Vermelha é o caminho do aeroporto internacional do Rio de Janeiro, nome adequado a uma partida, fina cicatriz. Basta que por baixo tudo esteja ligado, o início no fim, o fim no início, sangue a circular, amigos de longos braços. Meus amigos de longos braços do Rio de Janeiro: praia do Leme à noite, pé-sujo na Lapa, botecos da rua Alice, boteco Cabidinho, esplanada do Joaquina, calçada do Melone, casarão no Horto, moto no Cosme Velho. Tanta despedida tira peso à despedida, como deixar para trás livros anotados, dizer até logo, até já, ou chegar gente quando vamos mesmo a sair. Por exemplo, a protagonista desta crónica, perguntando num poema:

Quem acha que é deus para não me dar ouvidos?

2. Porque não chega ler, é preciso ouvi-la. A primeira vez que a ouvi estava uma plateia descolada da Zona Sul, ou seja, gente cool, sem corpo a sobrar da roupa, que nessa noite, assim de modo geral, não ia voltar para nenhum subúrbio nos fundos do Rio de Janeiro. Então ela pisou o chão, a luz bateu no cabelo de mestiça louro-pintado, top decotado, já não lembro se shortinho, se microssaia, mas algo mais justo que toda a Zona Sul. E dava para jurar que o nome dela não era Patricinha antes de ser anunciado: Monique Nix. E depois o poema dela era nada menos que um rap de Penélope com uma faca na ponta da língua, fazendo e desfazendo-se, sibilante. Quem era aquela escolhida, vinda dos fundos, defeito na fala? Assim a ouvimos, assim a reconhecemos: uma escolhida. Fez-se todo esse silêncio.

3. Muitas semanas depois mandei-lhe uma mensagem no Facebook, ela ia estar pelo centro naquela tarde, eu também. Encontrámo-nos ao fim da tarde na livraria Travessa da Sete de Setembro. Quando cheguei, ela tinha acabado de pegar num copo de vinho branco, daqueles de plástico que imitam cálices, porque havia um lançamento qualquer. Fizemos o resto da Sete de Setembro até à Praça XV de cálice na mão, ninguém diria que era plástico. Era noite, mais que Verão, nem uma brisa. Sentámo-nos num daqueles blocos grafitados que os skaters usam, som de skates estalando no chão, meio Rio de Janeiro correndo para as barcas, que no Rio nunca são barcos. Monique estava vestida como da primeira vez que eu a ouvira, corpo sobrando da roupa, podia ir dali para baile funk, salto alto e tudo, e ela até vai, e dança até ao chão. Gente tem isso quando a gente escuta: fica cada vez maior. Poeta no Rio não tem esse cabelo, não tem essa roupa, não vai em baile funk, e vocês ainda nem ouviram a história dela. Mas antes vou corrigir: poeta no Rio não tinha esse cabelo, não tinha essa roupa, não ia em baile funk. Poeta no Rio era deusa branca ainda que negra por dentro, Cecílias, Hildas, Anas Cristinas. Agora poeta no Rio enfim virou o Rio do avesso.

4. Monique já escreveu o que me conta, tomou a palavra antes que alguém perguntasse: a história dela é também um texto dela. A história dela sem o texto dela: o pai matou a mãe à facada quando ela era bebé; diagnosticado como esquizofrénico, foi internado; a memória que Monique tem de o visitar é de um homem doce, que nunca se esqueceu dela; quando ela tinha nove anos ele suicidou-se, deixando uma carta. Um dos poemas dela diz assim:

Não existe o certo,

tampouco o errado,

apenas as conseqüências do ato

5. Monique cresceu com parentes aqui e ali, correndo os fundos do Rio de Janeiro e a outra margem: Niterói, Engenho de Dentro, Méier, Penha, Vila da Penha, Ramos, Bonsucesso. Hoje vive em Vista Alegre

Parada de Lucas, lá nos confins da Zona Norte, paisagem de favela e comboios decrépitos. Casou cedo, foi mãe cedo, separou, tem um namorado, tem um emprego numa ONG, fala com a tranquilidade de quem continua a escrever a sua própria história. Não é uma questão de optimismo, ela sabe, ela escreve, que a dor sempre retorna no escuro quando o brilho acaba. Só questão de continuar vivo, contra tudo, contra todos. Mudar a narrativa da morte.

6. “Ora como algo como tu, tristeza, consegue ser tão bela e encantadora arte?”, post de Monique no Facebook. Posta coisas assim, no meio de fotografias com o namorado, de trocas de poemas, de cartazes de luta: mulher bonita é a que pensa; mulher bonita é a que luta. A fotografia do mural dela é uma última ceia perturbada por uma dançarina. Como é difícil arrumar Monique numa gaveta. Depois de me contar a história dela, lá sentadas as duas entre os skaters, ela falou de Nietzsche. Leu tudo o que apanhou. Entre todos os nomes, esse é o que ela vai citar primeiro. Ela que desafia deus a ouvi-la e escreve coisas assim:

Arrastada por cavalos negros,

segurando papoula

[...]

Leva o céu, leva o véu — a noite

toda vez que vejo,

olho seu reflexo no espelho.

7. Eu ouvi, no centro do Rio de Janeiro, as duas andando pela Sete de Setembro de volta ao metro, Monique desafiando deus, eu com pressa, ela dona do tempo, dizendo um poema que era uma espécie de escritura, bíblia de tudo, agora aqui, à velocidade a que quase corríamos, sem parar. Não tem jogo, não tem treino, dom ou tem ou não tem, como se diz do ó do borogodó, esse mistério. Convidou-me depois para um sarau na Lapa, um dos muitos que agora acontecem por toda a parte. Eu ia ver o Flamengo no Maracanã, não deu para mim. Fomos trocando mensagens, continuamos a trocar. As dela começam sempre por flor. Na boca dela, é nome de rapariga, em geral.     

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