Quase cem anos depois, a dança desembarca outra vez no Rossio

Duas peças iniciáticas e em diálogo com outras disciplinas artísticas, marcam o arranque da edição inaugural do Festival Cumplicidades, em Lisboa

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Cinemateca Pedro Pinho
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Looking Out Diogo Barros Pires

Francisco Camacho e Ezequiel Santos, respectivamente produtor e programador do Festival Cumplicidades, chamam “edição zero” a esta primeira mostra de dança contemporânea que esta sexta-feira se inicia em Lisboa, pelas 19h00, na Estação Ferroviária do Rossio, e se estende até 29 de Março.

Coreógrafo, bailarino e director da estrutura de produção EIRA, Camacho confessaria na apresentação pública do Cumplicidades sentir falta de “um festival exclusivamente dedicado à dança em Lisboa, até pelo momento de crise e de algumas debilidades”. As limitações financeiras, no entanto, obrigaram a prescindir de um programador para as criações vindas de fora, pelo que a ambição plena do “Festival Internacional” fica adiada para 2016, justificando a denominação de “ano zero”.

A abertura acontece esta sexta-feira, pelas 19h00, com o espectáculo HALE – Estudo para Um Organismo Artificial, uma criação repartida por Aleksandra Osowics, Filipe Pereira, Helena Martos, Inês Campos e Matthieu Ehrlacher. A localização na Estação Ferroviária do Rossio foi ideia do psicólogo e ex-bailarino Ezequiel Santos, numa perspectiva não apenas de plantar o Cumplicidades na vida da cidade, mas também numa piscadela de olho ao local onde os históricos Ballets Russes, de Sergei Diaghilev, desembarcaram em Dezembro de 1917, para uma série de oito espectáculos no Coliseu dos Recreios.

Com uma temática pouco rígida assente na ideia “olhar para o caldeirão da dança portuguesa e ver o que estava a acontecer”, o programador gizou um festival cujo prato forte assenta nos espectáculos de criadores em fase de afirmação ou com uma exposição aquém daquilo que o programador considera exigível, embora integre ainda debates, percursos, palestras e workshops.

Os primeiros dias do Cumplicidades serão marcados pelas apresentações a solo de dois coreógrafos com peças iniciáticas a exigir atenção imediata. Ambos partem também de um diálogo que estabelecem com outras disciplinas artísticas: no caso de Vânia Rovisco, com The Archaic, Looking Out, the Night Knight, a dança partilha o palco com a instalação; em Cinemateca, de Bruno Alexandre, é o cinema a infiltrar-se na composição coreográfica.

Dança e instalação

Sábado à noite, no Negócio, sala de artes performativas da Galeria Zé dos Bois, Vânia Rovisco apresenta uma criação que concretiza uma primeira proposta construída a partir dos dois grandes ciclos da sua carreira até hoje. Primeiro, os sete anos em que trabalhou na companhia Damaged Goods, a prestigiada estrutura da coreógrafa Meg Stuart, sediada em Bruxelas. Depois, quando chegou a altura de abandonar a Damaged Goods, a experiência que acumulou em instalações em galerias de arte berlinenses. “A experiência com a Meg Stuart foi tão intensa que não sentia precisar de ir para outro coreógrafo, a relação era mesmo muito plena”, conta ao PÚBLICO. “Mas depois desses sete anos pensei em desenvolver um trabalho próprio.”

Trabalhando a partir de uma libertação do palco, Vânia Rovisco quis pensar a sua intervenção artística como algo mais próximo de um objecto exposto num museu, como uma peça viva que pode ser visitada sem obrigar necessariamente o público a ter uma ideia do todo. Quando o público segue caminho, a peça continua a desenvolver-se, sendo entendida sempre a partir de um fragmento. The Archaic, Looking Out, the Night Knight é, agora, a primeira investida da coreógrafa e bailarina no encontro entre estes “dois mundos paralelos”. E funciona como tentativa de resposta à questão que se coloca: existe em si flexibilidade e versatilidade suficientes para que ambas as linguagens possam ocupar o mesmo palco? A presença dessas duas linguagens em cena faz-se precisamente com uma divisão espacial consagrada a cada uma, pensada em específico para a sala de artes performativas da Galeria Zé dos Bois, o Negócio.

Inspirada pelo movimento de Isadora Duncan, Vânia traz do seu trabalho com Meg Stuart a facilidade de saltitar rapidamente entre personagens. Daí que fale de uma figura, “o idiota”, que invade um dos segmentos da peça. “Essa presença a que chamo o idiota olha para o mundo de forma muito inocente. Mas o idiota pode tudo, porque a ignorância o permite.” Aquilo que presenciamos é que a experiência e o conhecimento, de certa forma, também.

Dança e cinema

Bailarino da Companhia Olga Roriz também há sete anos, Bruno Alexandre aventura-se pela primeira vez na criação coreográfica com Cinemateca, que se apresenta quinta-feira, 19, no DNA – casa-mãe do Teatro Praga. “O cinema para mim tem uma importância desmesurada em relação à dança”, confessa ao PÚBLICO, “como se até me tivesse acompanhado mais.” Dada essa forte ligação de origem e a admissão de que as segundas-feiras no cinema King foram essenciais na sua formação, o bailarino quis também procurar um universo intenso mas que lhe reservasse uma liberdade quase total na altura de fixar a sua linguagem.

Ao ver-se diante de um edifício tão monumental quanto o cinema, Bruno Alexandre decidiu reduzir o seu objecto de trabalho a partir de uma limitação: focou-se numa recolha de entrevistas a alguns dos realizadores que admira, como Aki Kaurismäki, Jim Jarmusch, Federico Fellini, Lucrecia Martel , John Cassavetes e Fritz Lang. Os dois últimos são mesmo audíveis em Cinemateca, demonstrando como o próprio discurso dos realizadores sobre a sua obra foi aproveitado como banda sonora ao mesmo tempo que ia proporcionando a Alexandre uma codificação de movimentos.

Enquanto respondia às ideias das entrevistas, ia igualmente convocando as suas memórias do cinema dos autores, fundindo tudo num discurso dançado. Dificilmente decifrável nas suas fontes, mas fica a pista de que num slow-motion da sua coreografia, a cabeça de Bruno Alexandre estará algures na sanguinolenta cena final de Taxi Driver.

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