Quando uns ingleses se apaixonam por jóias portuguesas é isto que compram e vendem

Os antiquários da S.J. Phillips mostra em Lisboa peças de uma colecção que levou décadas a reunir. A exposição fica só até domingo e no seu catálogo descobrimos também que a lista de compras de uma rainha pode ter 70 páginas.

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Laça de corpete em prata e ouro com diamantes e topázios. Produção portuguesa do último quartel do século XVIII Cortesia: S. J. Phillips

Francis Norton começou a trabalhar na loja fundada pelo seu bisavô, S.J. Phillips, em meados da década de 60 e não se lembra de uma altura, pelo menos nos últimos 50 anos, em que na colecção deste antiquário especializado em pratas e jóias, não houvesse peças de produção portuguesa. A família, que tem nas mãos esta casa de referência há já quatro gerações, sempre se interessou pela ourivesaria nacional, em particular a do século XVIII, de uma “exuberância rara”, diz o antiquário.

“Eu sou daqueles que acham que, no século XVIII, as jóias feitas em Portugal são muito melhores do que as francesas, para muitos as mais requintadas do mundo. São maravilhosas, delicadas e exuberantes. As suas cores são únicas. Já no século XIX são os franceses que ganham.”

The S.J. Phillips Collection of Jewels of Portugal, assim se chama esta exposição em que as peças estão à venda e que se instala na Casa Museu Medeiros e Almeida até domingo, partiu de uma ideia de João Magalhães, director do departamento de mobiliário europeu da Sotheby’s em Londres e representante em Portugal desta importante leiloeira.

A Sotheby’s e a S.J. Phillips são vizinhas em Bond Street, importante centro londrino do comércio de antiguidades, há 100 anos. Até há três ou quatro meses as suas portas eram mesmo em frente uma da outra (agora a loja de Francis Norton e dos seus primos, Jonathan e Nicolas, mudou-se para a esquina). “Fazia todo o sentido mostrar em Lisboa uma das melhores colecções de joalharia portuguesa antiga existentes fora do país e foi isso que propus a Francis Norton, que aceitou logo", explica Magalhães. "Foi no ano passado que descobri que existia, quando entrei na J. S. Phillips, depois de ver uma fotografia da Victoria Beckham [a ex-Spice Girl que é hoje designer de moda] a usar uns brincos portugueses desta colecção.”

As jóias portuguesas do século XVIII, garante Francis Norton, destacam-se pela qualidade da manufactura, mas sobretudo pela sua identidade, imediatamente reconhecível graças às “maravilhosas pedras preciosas e semi-preciosas” oriundas do Brasil e do Oriente, garantia de verdadeiras explosões de cor em pregadeiras, brincos e colares.

“Quando olho para estas peças apercebo-me imediatamente do seu charme português. É como perceber que determinada peça é falsa ou uma cópia. Há qualquer coisa… Às vezes, propõem-nos que compremos cópias, claro, mas elas são muito fáceis de identificar”, garante Francis Norton. Como? O antiquário pega num pendente do século XVII em ouro, com esmeraldas e diamantes, de manufactura portuguesa ou espanhola, um dos destaques da exposição: “Basta olhar para o verso da peça. Quem copia geralmente faz a frente relativamente bem, mas no verso nunca acerta. É no verso que vemos como a peça foi feita. Como copiar bem este verso de esmalte soberbo?”

Jóias como as que o antiquário S.J. Phillips mostra agora em Lisboa existem em colecções públicas e privadas portuguesas (no Palácio da Ajuda ou no Museu de Arte Antiga, por exemplo), diz João Magalhães, e são o resultado de um período de apogeu das artes decorativas portuguesas.

A lista de compras da rainha

O catálogo desta exposição que reúne 60 peças, mais de 90% do século XVIII, em prata e ouro, cravejadas de pedras preciosas (diamantes, safiras e esmeraldas) e semi-preciosas (topázios, crisoberilos e ametistas), inclui um ensaio da historiadora Diana Scarisbrick, uma das maiores especialistas mundiais em jóias.

O texto de Scarisbrick, precisa o representante da Sotheby’s em Portugal, não resulta de uma investigação histórica, é antes “um olhar sobre a joalharia portuguesa de alguém que sabe muito sobre joalharia e que vem de fora, não tem qualquer relação afectiva com o país”. Alguém que não precisa de gostar de Portugal para reconhecer qualidade nas jóias que aqui se produziram. A ourivesaria portuguesa, começa por escrever a historiadora britânica, foi “enfeitiçada” pelas pedras e pérolas vindas do Brasil, de Goa e Macau, o que deu origem a uma “joalharia distintiva de grande riqueza e encanto”.

Lembra Diana Scarisbrick que no século XVI, com os Descobrimentos, Lisboa substituiu Veneza como centro do mercado de gemas, reunindo um número impressionante de oficinas de ourives portugueses, mas também de italianos, espanhóis, franceses, flamengos e alemães.

Pedras, pérolas, ouro e prata dos vários cantos do império ultramarino cruzavam-se na Lisboa de quinhentos com uma das mais influentes cortes europeias — a dos Habsburgos, já D. Catarina da Áustria era casada com D. João III —, reconhecida pelo seu esplendor. Mas foi só no século seguinte, cujas primeiras décadas foram marcadas por uma monarquia dual (a mesma cabeça coroada para governar Espanha e Portugal), que emergiu um “estilo nacional”, defende Scarisbrick. Lisboa, Braga, Guimarães, Porto e Gondomar eram os principais centros de produção e tinham ourives que trabalhavam à vista do cliente, com a porta da oficina sempre aberta, criando peças com motivos florais e religiosos, entre elas brincos muito compridos e as célebres “laças” que podiam usar-se ao pescoço, pendendo de correntes de ouro ou fitas de veludo.

“As pedras chegavam e eram trabalhadas por ourives experientes e com muito talento, nem sempre portugueses, que tinham à disposição gravuras e desenhos que mostravam o que se estava a fazer na ourivesaria europeia, sobretudo na francesa. O resultado são peças de grande qualidade que hoje são muito procuradas”, acrescenta João Magalhães, referindo-se à joalharia do século XVIII.

Sem falar dos valores que podem atingir (nalguns casos, largas dezenas de milhares de euros), Francis Norton, o director da J.S. Phillips, garante que a qualidade destas jóias não escapa aos coleccionadores que o procuram, que podem ser altamente especializados ou estar só à procura de uma “peça primorosa” para usar em festas e jantares. “Estas jóias cativam. E não só os portugueses, para quem são familiares. Nós, os ingleses, gostamos muito delas.”

Magalhães não tem dúvida de que o número de exemplares da joalharia antiga portuguesa que esta firma londrina tem vindo a reunir e a transaccionar ao longo dos seus 150 anos tem contribuído de forma decisiva para criar um mercado internacional para esta produção. Um mercado que ela merece. “Há um toque português em tudo isto que distingue”, acrescenta, admitindo que hoje não é ainda possível saber se alguma destas jóias pertenceu à família real portuguesa: “É muito difícil levantar todo o percurso de uma jóia como estas, saber quem foram os seus donos. São peças com um grande valor afectivo, que muitas vezes passam de mães para filhas, e, por isso, quando são vendidas a um antiquário tudo é feito com absoluta discrição. Além disso, houve vários momentos da história, com revoluções, exílios e invasões, em que estas peças saíram de Portugal e se dispersaram.”

É precisamente em exílio que pensamos quando, ao folhear o catálogo da exposição, nos deparamos com um curioso documento de Maio de 1816 que hoje pertence a uma colecção privada inglesa. É um inventário das roupas, acessórios e jóias de uso quotidiano que D. Carlota Joaquina, mulher de D. João VI, mandou reunir em Paris. Esta lista de compras com 70 páginas e 200 anos retrata os gostos da corte portuguesa que fora forçada pelas tropas de Napoleão a trocar Lisboa pelo Rio de Janeiro e mostra até que ponto a rainha se preocupava em garantir que ela e as infantas acompanhavam as modas europeias. A avaliar por este documento, Carlota Joaquina tinha nos seus armários o que de melhor havia nas lojas da capital francesa no que toca a vestidos, sapatos, luvas, leques, chapéus, cosméticos, lenços, jóias, meias de seda e lingerie.

“Este documento nunca foi estudado”, diz João Magalhães, co-organizador da exposição. “Seria interessantíssimo que alguém o fizesse.”

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