Leilão de entradas para Altamira está a provocar polémica em Espanha

Conselheiro da Cantábria propôs vender cinco bilhetes por ano para a gruta original, famosa pelas pinturas rupestres, a quem estiver em condições de pagar mais. Políticos e cientistas já protestaram.

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UNESCO

Era apenas uma “ideia pessoal”, “expressa espontaneamente”, durante uma entrevista ao Diario Montañés, no passado domingo, assegurou esta sexta-feira ao jornal ABC o conselheiro para a Inovação, Indústria e Comércio da Cantábria. Mas, rapidamente, se transformou em tema de debate. Afinal, não é todos os dias que um membro de um governo regional se propõe interferir no princípio da universalidade do acesso aos bens culturais.

Fracisco Martín sugeriu há cerca de uma semana que cinco bilhetes para a gruta de Altamira fossem leiloados todos os anos, permitindo assim, a quem estivesse em condições de pagar mais, a entrada num dos sítios arqueológicos mais importantes do mundo, dado o seu fabuloso conjunto de pinturas rupestres do paleolítico. Uma entrada que tem vindo a ser limitada por questões de conservação e que, segundo os cientistas, devia estar até proibida.

O conselheiro de Turismo da Cantábria não antecipava, provavelmente, a polémica que acabou por se instalar, envolvendo cientistas e políticos, e valendo-lhe até um incisivo reparo do secretário de Estado da Cultura, José Maria Lasalle, ele próprio natural da Cantábria, nas páginas do ABC: “Gerir um lugar como Altamira não é comparável a um leilão de gado.”

“Entre a ideia, tal como foi concebida, e o que em seguida se veio a debater a nível público há um mundo”, diz Fracisco Martín, citado esta sexta-feira pelo mesmo diário, admitindo que nem o presidente do governo da Cantábria, Miguel Ángel Revilla, nem o conselheiro de Cultura, Ramón Ruiz, estão de acordo com a proposta que, segundo Martín, sempre foi de leiloar “apenas duas” entradas para gerar “um bocadinho de marketing turístico”.

Durante a semana muitos se foram manifestando contra a “ideia” de Martín. O secretário de Estado da Cultura espanhol foi dos primeiros, defendendo que era absolutamente contrária à política de entradas nos museus estatais: “Neste país o acesso à cultura tem de ser igual para todos os cidadãos”, disse o político do Partido Popular, aqui citado pelo diário El País. Lasalle, que não afasta a possibilidade de Altamira vir a ter um patrocínio privado, um mecenas, adverte, no entanto, que a decisão está agora nas mãos de quem dirige este importante sítio arqueológico, património mundial desde 1985, complementado por um museu, um centro de pesquisa e uma réplica à escala natural que recebe milhares de visitantes por ano.

O organismo que gere Altamira é constituído por representantes do Ministério da Cultura espanhol, do governo da Cantábria, da Fundação Botín, do Centro Superior de Investigações Científicas e do município de Santillana del Mar, a cidade histórica que fica nas imediações. Toda e qualquer medida que diga respeito ao sítio arqueológico e às estruturas a ele ligadas tem de ser aprovada por este núcleo, que ainda não se pronunciou oficialmente sobre a proposta do conselheiro de Turismo cantábrico.

Dinheiro e negócios

A proposta para o leilão de entradas surgiu numa entrevista que Francisco Martín deu ao Diario Montañés, em que defendeu ainda que, sendo um pólo turístico de primeira grandeza, o complexo de Altamira está claramente subaproveitado.

Declarada património da humanidade em 1985, a gruta esteve fechada durante 12 anos até há bem pouco tempo, por recomendação dos cientistas, que assim quiseram proteger as pinturas milenares das bactérias levadas pelos visitantes. Foi reaberta, a título experimental, em Fevereiro de 2014, tendo vindo a receber desde então cinco pessoas por semana, cuja entrada é sorteada, às sextas-feiras, entre os que acorrem ao museu onde se encontra a réplica.

Mas mesmo este número aparentemente reduzido de pessoas – 425 no total, que entraram usando máscara e outros equipamentos de protecção e que ficaram apenas oito minutos na sala onde estão as famosas pinturas tem vindo, segundo os cientistas, a afectar o equilíbrio dentro desta gruta cuja entrada foi descoberta por acaso por um caçador em 1868, mas cuja arte só seria conhecida 11 anos mais tarde. Nela se encontram representações de cervos, cavalos e bisontes executadas entre 35000 e 11000 a.C. que nos fazem pensar de imediato nos primórdios do cinema, tal é o movimento que os volumes naturais da parede rochosa e as sobreposições das pinturas sugerem.

Ao Diario Montañés, Martín explicou que a principal vantagem de um eventual leilão de entradas online seria a de conquistar mais visibilidade internacional para este sítio arqueológico, que tantas vezes é descrito como “a Capela Sistina do paleolítico”, graças a estas pinturas que estão entre as primeiras manifestações do génio criativo do homem.

“Há pessoas que estão dispostas a pagar muitíssimo dinheiro para entrar na gruta original, e até a criar negócios”, acrescentou Martín a este jornal de Santander, na entrevista amplamente citada pelo El País e pelo ABC, explicando que falou com um “importante e famoso cozinheiro de Nova Iorque” que lhe confidenciou que estaria disposto a abrir um restaurante em Santillana del Mar caso pudesse garantir aos seus clientes acesso às pinturas rupestres originais. “Há muitas soluções técnicas no século XXI para que [as visitas] não afectem o ambiente [da gruta]”, assegura ainda este engenheiro de formação.

Proibir a entrada

A maioria dos cientistas que se tem manifestado – grande parte da comunidade científica sempre viu com maus olhos a reabertura da gruta original, ainda que condicionada, em 2014 – não concorda com Martín. Apoiando-se nas conclusões de um relatório do Centro Superior de Investigação Científica (CSIC), a pré-historiadora Teresa Chapa, da Universidade Complutense de Madrid, defende, sem reservas, que o original devia estar fechado ao público. “A presença humana afecta sempre as grutas porque implica abertura de portas, aumento da temperatura, introdução de organismos externos, emissão de dióxido de carbono e alteração das condições de iluminação”, explica nas páginas do diário El País, acrescentando que a topografia de algumas permite, no entanto, uma recuperação rápida. “Não é o caso de Altamira”, diz esta especialista em Pré-história, garantindo que o relatório dos seus colegas do CSIC demonstra que a gruta na Cantábria “atingiu o limite da sua capacidade de equilíbrio”.

Teresa Chapa lembra ainda que outras importantes grutas europeias com pinturas rupestres – Lascaux e Chauvet – estão fechadas e que essa situação não tem levantado quaisquer dúvidas ou problemas. “Altamira não pode ser considerada um produto de consumo, muito menos favorecendo um grupo de pessoas com alto poder de compra em detrimento do resto”, defende, alertando para as responsabilidades acrescidas que lhe confere o selo atribuído pela UNESCO (organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura). “Como bem declarado património mundial, temos o compromisso perante a humanidade de conservar a gruta nas melhores condições possíveis para as próximas gerações e isso, hoje, passa pelo seu encerramento.”

A ideia do conselheiro da Cantábria já levou também a várias reacções políticas, entre elas a do Podemos, que já classificou a proposta como um “grande retrocesso”, fazendo notar que introduz um princípio de desigualdade que é “diametralmente oposto” à sua classificação como património da humanidade, de todos.

Num artigo de análise no El País em que defende que o interesse turístico não pode sobrepor-se, em cenário algum, à sua “importância científica incomensurável”, Guillermo Altares, um dos redactores principais do diário El País, especialista em temas internacionais, chama a atenção para o sucesso de visitantes da réplica da gruta de Chauvet, em França, que inaugurou na passada primavera e que nos primeiros cinco meses recebeu 400 mil visitantes, ultrapassando as estimativas anuais. “Não se pode deixar ao acaso nem à ganância a memória da humanidade”, escreve o jornalista.

Esta sexta-feira terão sido sorteadas mais cinco entradas para a gruta original entre os visitantes do museu. Para quem já viu a réplica – onde há sempre filas, máquinas fotográficas e guias a demonstrar, em voz alta e começando a cada cinco minutos, o seu domínio rudimentar de qualquer outra língua que não o castelhano – é algo com que pode valer a pena sonhar. Mas só sonhar – se a visita põe em risco um património insubstituível, é bom que ela fique, para já, adiada.

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