Presidente da Gulbenkian tomou posse com objectivos claros e um conselho às netas

No seu primeiro discurso, Isabel Mota falou de renovação, do apoio aos mais vulneráveis, na cultura como garantia de uma sociedade solidária e de prudência na gestão de recursos. E de como é ainda difícil para uma mulher conciliar família e carreira.

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Isabel Mota entre Teresa Gouveia, administradora da fundação, e Artur Santos Silva, o presidente cessante Nuno Ferreira Santos

Sala a abarrotar, com três chefes de Estado - o actual Presidente da República e dois antigos - o cardeal patriarca de Lisboa e muitos membros de anteriores governos sentados na plateia. O mesmo formalismo de sempre, com o protocolo a ditar que no palco do auditório 2 se perfilassem os oito administradores da fundação antes de assinarem o documento que tornou tudo oficial. Mas, em vez do habitual fato escuro de calças e casaco, a protagonista da tarde usava um tailleur branco às riscas; em vez de um jurista formado ou pós-graduado em Coimbra; uma economista da Universidade de Lisboa; em suma, em vez de um homem, uma mulher. A primeira no cargo em 60 anos. Isabel Mota é a partir desta quarta-feira a nova presidente da Fundação Gulbenkian.

Numa sessão pública que durou cerca de uma hora e fechou com um sexteto de cordas de Brahms interpretado por solistas da orquestra da casa, houve tempo para a presidente estreante dizer quais são os grandes objectivos para o mandato de cinco anos que agora começa e para Artur Santos Silva, o cessante, fazer o balanço da sua liderança e ser condecorado por Marcelo Rebelo de Sousa com a grã-cruz da Ordem de Sant'Iago da Espada pelos seus serviços ao país em grandes instituições culturais como Serralves, a Casa da Música e a Gulbenkian, naturalmente.

Santos Silva foi o primeiro a falar. Sublinhando que a maior parte das intervenções com impacto social que a fundação desenvolveu nos últimos cinco anos se devem a iniciativas e projectos coordenados por Isabel Mota, o também presidente honorário do BPI elogiou-lhe as “raras qualidades humanas e profissionais”, a “exemplar devoção” no serviço do bem comum, a “capacidade de mobilização e motivação de equipas” e “o talento de fazer acontecer”.

Num clara reacção (mas sem nunca a referir) à recente carta aberta assinada por 40 figuras da política, da academia e da cultura pedindo à Gulbenkian que elaborasse uma estratégia para se libertar progressivamente dos seus activos relacionados com combustíveis fósseis, Santos Silva fez ainda questão de dizer que deixa à nova presidente uma fundação que é hoje menos dependente dos rendimentos que resultam do petróleo e do gás (em 2011 representavam 38% dos recursos próprios e hoje situam-se nos 20%).

Um dia marcante

Depois, e num discurso de dez páginas, lido com entusiasmo e até alguma emoção, foi a vez de Isabel Mota voltar a falar das grandes linhas que orientarão a sua liderança, já enunciadas no comunicado que a fundação fez chegar às redacções quando o seu nome foi anunciado, a 7 de Dezembro.

A nova presidente quer a Gulbenkian a antecipar os grandes problemas sociais, contribuindo de forma criativa e eficaz para encontrar soluções; quer manter o compromisso para com os mais vulneráveis, que deverão ser os principais beneficiários da actividade da casa; e continuar a apoiar a arte, a educação e a ciência, sobretudo porque estes alicerces da tolerância, assim lhes chamou, conduzem a “uma sociedade culta [que] dificilmente será compatível com uma sociedade que não é solidária”.

“Para mim o principal desígnio da fundação, a mais relevante instituição filantrópica portuguesa, é antecipar o futuro e apostar na inovação, ajudando a preparar os cidadãos de amanhã”, disse Mota, falando da Gulbenkian como uma “obra sempre inacabada” em que os portugueses muito confiam.

Quando Santos Silva a desafiou a apresentar-se como candidata à presidência da instituição criada em 1956 de acordo com as disposições testamentárias do filantropo de origem arménia Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955), Isabel Mota lembrou-se de imediato da galeria de retratos dos anteriores presidentes da casa (Azeredo Perdigão, Ferrer Correia, Victor de Sá Machado, Rui Vilar e Santos Silva) e sentiu, disse-o ao início da tarde desta quarta-feira, uma “certa apreensão face à magnitude da tarefa”. Uma apreensão que não terá durado muito. “Como sou uma mulher de coragem, e sei que na vida nada acontece por acaso, e que tudo tem o seu tempo, foi com grande determinação que assumi este desafio.”  

Isabel Mota lembra-se bem do seu primeiro dia de trabalho na fundação, onde chegou pela mão de Rui Vilar, e hoje, 20 anos depois, garante que tudo nela lhe é “próximo e familiar”: “Conheço as pessoas e os desafios que a instituição hoje enfrenta. Acompanhei bem de perto as mudanças que a fundação foi vivendo nas últimas décadas, em função dos constrangimentos da sua perpetuidade ou da própria alteração do contexto da sua intervenção.”

Potenciar a criação artística na sua imensa diversidade para activar “o papel cívico da cultura”, usar a arte para estabelecer pontes entre o Ocidente e o Oriente e aumentar a flexibilidade da fundação sem nunca diminuir a qualidade do que faz e garantindo sempre “prudência na gestão dos recursos” são alguns dos pontos em destaque na agenda a que se propõe, sempre consciente das dificuldades da tarefa, reforçou.

“Hoje é sem dúvida um dos dias mais marcantes da minha vida”, disse a presidente, que por várias vezes falou na necessidade de renovar lideranças. “A Fundação tem de ousar trilhar caminhos novos, como, aliás, sempre o fez no passado.”

Tendo já desempenhado vários cargos públicos, entre eles o de secretária de Estado em dois governos de Cavaco Silva, Isabel Mota, economista de 65 anos com quatro filhos e 11 netos, não quis terminar a sua intervenção sem falar do facto de ser a primeira mulher na presidência de uma instituição já com 60 anos. Emocionada, dirigiu as suas últimas palavras às netas e falou de realização pessoal e da dificuldade que ainda hoje sentem as mulheres para conciliar a carreira com a vida familiar.

“Quero, acima de tudo, dizer agora às minhas netas que uma carreira profissional é apenas, e só, uma parte importante da nossa vida. A realização pessoal vai muito mais além, e exige escolhas, sensibilidade e bom senso que preservem o essencial — o amor, a família e a integridade”, sublinhou. “Conciliar uma carreira com a família é um desafio também para os homens, mas a verdade é que as mulheres têm-se confrontado com mais dificuldades e incompreensão e têm feito um longo e persistente caminho na procura da igualdade. Espero sinceramente que daqui a cinco anos todos os que têm confiado em mim tenham orgulho no meu mandato como a primeira mulher presidente da Fundação Calouste Gulbenkian.”

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