Prelúdio ao início da dança

Emmanuelle Huynh trabalhou sobre a ideia de um tempo em suspensão.

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Tôzai… de Emmanuelle Huynh Marc Domage
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Tôzai...! é o grito que, desde os bastidores, anuncia o momento inicial do bunkaru (teatro de marionetas japonês, cuja tradição popular  remonta ao século XVII), e  o movimento de abertura da cortina, arrastada “de oriente a ocidente” por um personagem invisível, enrolado no próprio tecido. O título da peça de Emmanuelle Huynh (França, 1963) resume o gatilho da obra e um dos seus temas criativos recorrentes: o fascínio pela cultura performativa nipónica ancestral (o teatro , bunkaru e kabuki) que, resistindo às atribulações do país, conhece hoje derivações que reactualizam os seus dispositivos de narração.

Huynh trabalhou sobre a ideia de um tempo em suspensão: a misteriosa transição cerimonial entre “o antes” e “o início” do espectáculo. Uma cortina cinza atravessa o meio do palco durante o primeiro terço da peça; ainda o público se acomodava, e uma intérprete, de calças de treino pretas e camiseta parda casuais, parece perscrutar a cena; o seu movimento, alimenta-se do texto poético narrado em off por uma meia-voz masculina. A luz decai sobre as duas mulheres e três homens que lhe sucederão: a indumentária neutra, rompida por apontamentos coloridos, brilhos ou transparências, acentua as distintas morfologias dos corpos e seus registos gestuais. O longo prólogo, dizia a folha de sala, inspirava-se no protocolar sambaso, figura do bunkaru: a vistosa performance preliminar visa purificar a atmosfera de espíritos nocivos, energizar a actuação de bons auspícios.

A cortina é, em Tôzai…!,  a personagem central. Alusão à grande pálpebra vertical que, no bunkaru sucessivamente cobre e descobre a acção teatral, abrindo profundidades no palco e as camadas do tempo narrativo. O desafio de Huynh era construir uma dança que operasse nesse limbo, entre “o que ainda não é” e o que ”já é”; descolar do seu território referencial e estendê-lo a todo o acto teatral, onde a cortina (real, simbólica) marca o espaço/tempo que distingue a representação (função tendencialmente desempenhada pela luminotecnia nas práticas performativas de hoje).

Mas a peça não define estratégias claras para ocupar esse lugar volátil, impreciso. Cede a trazer outros referentes que conflituam com a moldura preambular onde se queria instalar. O movimento dos bailarinos evolui para outros imaginários da dança: há, nos braços, esboços de ondulações de cisne, poses helénicas de inspiração modernista, posturas de artes marciais e sugestões animalescas do teatro asiático, meneios casuais ou o formalismo aleatório da dança pós-moderna; envereda-se, ocasionalmente, por instantes de paroxismo. As identidades performativas são, quiçá, demasiado marcadas, e a banda sonora (difusa, no limiar audível), de sonidos electrónicos, ressonâncias de shamisen tradicionais, ecos de passos e vozeares indistintos, convoca espaços paralelos, outras viagens mentais.

Se pouco sobrevive do referencial de partida, tal não se seria questionável se Tôzai…! lograsse levar-nos, de modo meramente sensorial ou abstracto, até às subtilezas  do espaço/tempo intercalar  que quer habitar. A leitura da peça fica algo refém do discurso conceptual da Huynh. O registo errático envolve-nos, todavia, numa serenidade delicada, de sabor oriental que, nos seus melhores momentos, quase materializa o tempo suspenso, fina ansiedade e presságio, antes do espectáculo começar.

 

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