Prefácio em forma de prepúcio redundante e sem pós, faço-o…

Pré-publicação do prefácio que Rui Reininho escreveu para Uma Autobiografia, da artista brasileira Rita Lee, que é publicado nesta sexta-feira pela Contraponto.

Aqui se revela o apelo irresistível de entrar na dança de Rita Lee Jones num jogo imparável de palavras e obras que nos vem de meados do século passado. A artista, envolvendo-nos numa delicodoce e ácida teia que envolve romance, novela, mistério, ciúme & aventura mas sobretudo amor e roquenrou proporciona-nos uma inesperada crónica dos bons, maus e outros costumes da sociedade dos Estados Unidos do Brasil no final da pretérita década de 40 onde surgiu, qual cometa, numa visão única e preciosa sobre a vidinha de uma moça dos subúrbios de São Paulo no seio de uma disfuncionalíssima família com regras ditadas pelo gineceu, o patriarcado, a selva circundante e o betão, os costumes e as modas, passando por informações preciosas sobre a imigração da comunidade sulista americana posterior à Guerra da Secessão e o acolhimento por parte de um novíssimo país a brotar em vulcânicas contradições religiosas, morais e cósmicas e... sobretudo cómicas.

De um teatrinho micro se salta para uma tragédia macro, qualquer evento ou receita familiar é tema para inspiração, balbúrdia e alarido: a normalidade aparente dos Jones forma essa menina endiabrada que aceita tudo o que lhe vem sucedendo porque um destino, quiçá um fado, tinha já rasgado no espaço um percurso celeste.

E a La Nave Rita vá, em italiano, pretoguês, inglish com jazzponês com muitíssima música à mistura e os medicamentos, os curativos e as mezinhas começam a transformar-se em imagens distorcidas do outro lado do espelho, hipérboles, sónicas, alucinogénias e alcoólatras: mas sempre distintas e aristocráticas sequências de notas musicais e Sábios conselhos aos mais desavindos.

Esta menininha franzina mas duríssima de roer, essa forcinha vinda de um impulso maior que a doce mediocridade, a vulgar aceitação das regras, leva-nos pela mão pela calada e aos sopetões ao terrível mundo da modernidade elétrica que alguns chamam e apelidam de rock’n’roll.

Uma Autobiografia é a biografia de um Brasil que conhece transformações rapidíssimas, que vê crescer Brasília e os militares repressores no poder, a cornucópia carnavalesca e a censura, o talento inato de um povão para a música, o ritmo no improviso, na composição, na cachaça e na champa, no mito e na capoeira, no futebol e no chop! Terráqueos únicos, os brasileiros balançam os corpos em levadas de espuma, flores e frutos perfumados e Miss Rita empoleirada então em palcos de onde cai, escorrega e patina como verdadeira campeã, vai brilhando com seu olhinho esperto nunca perdendo noção de si, modesta demais quanto ao seu talento, importância e influência; essa noção da sua limitação humana dá -lhe uma dimensão ainda mais fantástica pois nada pede ou exige em troca, senão, Saúde (mental & mentol) dinheiro (que Baste para Gozar) e Amor (todo o que vier de parentes, amigos e amantes é mais do que bem-vindo ao Futuro).

Rita Lee, que tanto cantou, ainda nos encanta, com as suas memórias ora hilariantes ou assustadoras numa linguagem neológica em que inventa, por vezes com a colaboração de um fantasminha indesmentível, uma das assombrações que preencheram a sua louca vida louca: lúcida, luxuriante, latina, léxica... Linda.

Obrigado mesmo, MississiPi Lee, por sermos seus Contemporâneos Mutantis MorFanos.

Rui Reininho no Porto de 2017.

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