Poeta? Cantor? Uma voz em estado de graça

Antes de gravar o primeiro disco, Leonard Cohen já tinha publicado quatro livros de poemas e dois romances e a crítica canadiana via nele o melhor poeta da sua geração. Mas talvez os seus melhores poemas sejam mesmo as canções.

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Na cerimónia de entrega do Prémio Príncipe das Astúrias na categoria de Literatura em 2011 Reuters/Felix Ausin Ordonez

Em Outubro, quando o Nobel da Literatura foi atribuído a Bob Dylan, uma das observações mais recorrentes nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais era a de que a Academia Sueca, a fazer questão de consagrar um músico, deveria ter optado por Leonard Cohen. Independentemente de se estar ou não de acordo – o próprio Cohen, aliás, afirmou então que atribuir o Nobel a Dylan era o mesmo que dar ao Evereste o prémio de montanha mais alta do mundo –, não é por acaso que tanta gente se lembrou, para efeitos de comparação, deste canadiano, autor de canções como Suzanne, Bird on the wire, Famous blue raincoat ou Dance me to the end of love. É que a qualidade (aqui também no sentido de característica) literária das suas canções é tão óbvia que é muitas vezes difícil decidir se estamos a ouvir um cantor ou a escutar um poeta a dizer os seus próprios poemas.

Estranho seria, de resto, que as suas canções não tivessem essa ressonância literária, tendo em conta que quando lançou, em 1967, o seu primeiro disco, Leonard Cohen era já um escritor reconhecido, com quatro volumes de poemas – tinha apenas 22 quando publicou Let Us Compare Mythologies (1956) – e dois romances: O Jogo Preferido (1963) e Belos Vencidos (1966), o primeiro editado em Portugal pela Difel, com tradução de Dina Antunes, e o segundo na Relógio D’Água, numa tradução de Margarida Vale de Gato.

No documentário Ladies and Gentlemen, Mr. Leonard Cohen, que Donald Brittain e Don Owen realizaram em 1965, o narrador do filme assegura que a crítica literária canadiana já então considerava Cohen, com 30 anos, “o melhor poeta da sua geração”. O que hoje é menos lembrado é que também fez algum sucesso como artista de stand-up comedy, a ponto de o mesmo narrador se ter sentido obrigado a explicar que essa não era a sua dimensão principal e que este “singular talento” tinha já “quatro livros pendurados no cinto e uma crescente reputação” literária. A verdade é que este seu passado de artista cómico não surpreende assim tanto, se pensarmos que a melancolia das suas canções nunca foi isenta de sentido de humor e, sobretudo, de uma aguda auto-ironia, talvez nunca tão pungente como quando parece estar a vangloriar-se.

Jorge Sousa Braga, o primeiro a traduzir para português, com a colaboração de Carlos Tê, uma escolha da poesia de Leonard Cohen (Filhos da Neve, Assírio & Alvim, 1985), é dos que preferiam ter visto os académicos suecos a inclinar-se para o canadiano: “É alguém que veio do mundo da poesia e só depois é que começou a cantar, e talvez por isso a maioria das suas canções funcionam também como poemas, porque ele mantém o mesmo rigor de um lado e doutro”, argumenta o poeta e tradutor, que intui nas baladas de Cohen “um profundo conhecimento da poesia”. E “desde o início até este seu último disco”, acrescenta, “ele tem sempre por trás toda a tradição da literatura hebraica, como se fosse um profeta judeu”.

Já o poeta Daniel Jonas acha que o Nobel “foi bem entregue a Dylan, como seria bem entregue a Leonard Cohen”, e acha que, num caso e noutro, não faz muito sentido tentar isolar, nas canções, letra, voz e música, preferindo encarar os discos de ambos como “audiolivros”.

Menos apreciador do Cohen romancista, que considera “bastante datado” – parecem hoje bastante exageradas, de facto, as comparações com James Joyce que o experimentalismo desbragado de Belos Vencidos chegou a suscitar –, Jonas prefere o poeta, e acha que o melhor da sua poesia está mesmo nas canções, admitindo que as exigências rítmicas e métricas que o trabalho do letrista implica “talvez o ajudassem a controlar melhor” a escrita. E nem sempre é fácil, de resto, separar poemas e canções, porque alguns textos transitam entre livros e discos, como o célebre Suzanne, dedicado à artista Suzanne Elrod, mãe do seu filho Adam e da sua filha Lorca, cujo nome presta homenagem ao poeta espanhol Federico García Lorca, uma das referências de Cohen.

E da vasta discografia do cantor, Jonas tem uma predilecção pelos primeiros trabalhos – de Songs of Leonard Cohen (1967) a Songs of Love and Hate (1971) –, nos quais crê “estar muito presente” essa capacidade que Cohen tinha de “atingir um alto grau de abstracção, mas criando personagens e recorrendo a imagens de cenas muito concretas”. E potenciando depois tudo com os seus dotes interpretativos. “Ele era muito bom actor, e muitas das canções são declamações levadas a um extremo de bom gosto”, diz Jonas, confessando, também neste domínio, preferir “a voz de cana rachada dos primeiros discos” a essa “golden voice” mais cava que se tornaria a sua imagem de marca.

Uma ampla escolha da poesia de Cohen – incluindo a que apenas existiu como texto impresso e a que foi também cantada –, vai ser em breve publicada pela Relógio D’Água, em traduções de Margarida Vale de Gato e do próprio editor Francisco Vale, numa reedição ampliada da antologia Poemas e Canções de Leonard Cohen (1999). Nunca tendo deixado de publicar poesia com alguma regularidade, Cohen começou ele próprio a juntar poemas e canções em antologias conjuntas, como Stranger Music: Selected Poems and Songs, de 1993.

E se morreu sem ganhar o Nobel, Cohen recebeu vários prémios literários ao longo da vida, o primeiro dos quais aos 16 anos, num concurso universitário. Pelo conjunto da sua obra, foi-lhe atribuído em 2011 o prestigiado prémio Príncipe das Astúrias na categoria de Literatura. No discurso de agradecimento, confessou que encarava com algum desconforto que se premiassem poetas, porque “a poesia vem de um sítio que ninguém comanda, ninguém conquista”. E acrescentou: “se eu soubesse de onde vêm as boas canções, ia lá mais vezes”.

Quase meio século antes, numa sessão pública em que lhe pediram que se definisse como poeta, respondera: “Quando me levanto de manhã, a minha principal preocupação é descobrir se estou ou não estou em estado de graça (…), e se não estou, tento voltar para a cama”.

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