Pistoletto e a fórmula da criação

O artista italiano voltou a Portugal, desta vez para uma performance no MAAT. E explicou como ultrapassa os limites do processo artístico.

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Michelangelo Pistoletto é sobretudo conhecido por ser um dos elementos mais notáveis do grupo italiano de artistas que o crítico e curador Germando Celant baptizou de arte povera no ano de 1967. Nuno Ferreira Santos

Em Portugal para realizar uma performance na cobertura do novíssimo MAAT, Pistoletto falou com o PÚBLICO acerca da sua obra e sobre o modo como o todo do seu trabalho deve ser visto como um processo de permanente experimentação que se caracteriza por uma permanente tentativa de gerar, a partir do nada, uma proposição significativa. É aquilo a que o artista chama a fórumal da criação.

Uma das suas últimas preocupações, e que o filme Vinte e um. O dia em que o Mundo não acabou (2013) que o realizador português Marco Martins lhe dedicou, relaciona-se com uma compreensão do mundo em que nos alerta para o facto de que para além das crises e das ameaças, a vida, a criação e o mundo permanecem.

Já por quanto estive em Guimarães e desenvolvi o projecto chamado Love difference era essa ideia do mundo como estado de permanente criação que me preocupava. No projecto de Guimarães tratava-se de entender o mar enquanto criador de civilizações: especialmente no mar mediterrâneo. O projecto começou nesse mar porque o seu nome, ‘medi’ mais ‘terraneo’, que dizer entre terras: no mundo existem sete mares com estas características (Mar Báltico, Mar Vermelho, Mar das Caraíbas, etc.) e o que eu quis foi activar uma consciência de um mundo único habitado por todos.

A performance Terceiro Paraíso pode ser entendida como uma espécie de tentativa de nos fazer sentir ligados uns aos outros e ao mundo.  É a fusão entre o primeiro e o segundo paraíso. O primeiro é aquele onde os seres humanos estavam completamente integrados na natureza. O segundo é o paraíso artificial, desenvolvido pela inteligência humana. O Terceiro Paraíso é a terceira fase da Humanidade que se realiza na junção equilibrada entre artifício e natureza. Trata-se de um grande mito que leva cada um de nós a assumir uma responsabilidade pessoal na visão global. O símbolo do Terceiro Paraíso é constituído por três círculos consecutivos. Os dois círculos externos representam todas as diversidades e as antinomias, incluindo natureza e artifício, o do meio é a interpenetração dos círculos opostos e representa o ventre que gera a nova humanidade.

O seu trabalho ficou conhecido por uma intensa crítica ao mundo da arte e à integração da arte na lógica capitalista do consumo, estas novas obras são ainda formas de ser crítico?

A minha intenção não é ser crítico, mas sugerir soluções. Claro que para produzir ideias e soluções temos de começar por uma intensa crítica, começar por ver o que precisa ser mudado. Mas a minha finalidade não é desenvolver projectos artísticos agressivos e revolucionários.

Mas as obras que fez e que foram entendidas como arte povera são formas muito fortes e agressivas.

São-no é verdade, mas não no sentido negativo. Tento sempre propor elementos concentrados e enérgicos. A arte povera baseia-se na ideia de estruturas básicas da energia: propus-me organizar uma nova visão da sociedade e começar a construção dessa nova visão a partir da realização de arte que pudesse ser traduzida numa forma social.

Podemos localizar o seu trabalho algures entre o expressivo e o conceptual?

O meu trabalho surge do conceito fundamental de representação, não me interessa a abstracção mas a representação da figura. E esta é a história da arte italiana que é uma história da imagem e que é a minha história. Comecei por trabalhar auto-retratos não porque me quisesse representar a mim mesmo, mas porque quis explorar como é que através da imagem se podia constituir a identidade. E para isso precisei de espelhos. E estes auto-retratos são, de algum modo, retratos da sociedade e, portanto, o meu auto-retrato é simultaneamente o retrato da humano e o retrato da humanidade o meu retrato.

O que nos diz é uma caracterização muito metafísica do seu trabalho.

Metafísica é uma palavra muito boa. Porque o espelho é constituído por uma base material, mas o material não está incluído no espelhar. Por isso, o espelho é meio físico, meio imaterial. Uma vez tentei dar ao espelho a sua própria imagem e cortei um espelho ao meio e pus as metades frente afrente e, claro, esta junção não criou uma imagem, mas sim um terceiro espelho. E esta multiplicação infinita, a que podemos chamar metafísica, é a base da minha obra.

Como é que, com este tipo de preocupações e investigações, se vê como um dos membros fundamentais da chamada arte povera?

O nome foi-nos dado por Germano Celant. Antes disso eu era considerado um artista da pop arte. Mas isso era um erro, porque o Andy Warhol ou o Roy Lichenstein estavam preocupados com a sociedade do consumo, ou melhor, interessava-lhes o sistema do consumo: as revistas, o cinema, os jornais, a publicidade. Eu estava mais preocupado com a representação da realidade e do humano em geral e não com um sistema social. E foi neste contexto que me juntei com artistas amigos para fazer frente a essa ideia americana de arte.

Fazer frente?

Foi importante para nós mostrar que era possível desenvolver projectos artísticos totalmente diferentes daqueles que os norte americanos propunham. Uma visão crítica que não era só destrutiva, mas continha no seu centro a proposta de algo mais concentrado, não disperso, sem aquele glamour da sociedade do consumo. É isto a arte povera.

E não há uma contradição quando as vossas obras se tornaram tão glamorosas como, por exemplo, as do Warhol?

Mas o glamour  não é causa das nossas obras, é uma consequência do nosso trabalho. Fico muito contente que o meu trabalho esteja no museu, porque aí toda a gente pode compreender o meu processo e a minha investigação.

Acha que os museus são os locais indicados para obras de arte que, como as suas, pretendem regenerar o mundo?

O museu de arte moderna e contemporânea foi decisivo, mas agora já estamos num outro tempo. Mas anteriormente os museus foram fundamentais nessa conquista da autonomia e da liberdade artística: face à multiplicação dos objectos do consumo, o museu é o lugar do único e do singular. Só no museu o um encontrou o seu lugar próprio. Eu quis manter a liberdade do individuo e da expressão e levar essa autonomia para a sociedade não para que a sociedade consumisse essa individualidade, mas que através dessa individualidade, que podemos considerar serem as minhas obras de arte, transformar a sociedade.

Mas os sistemas e as economias artísticas que os museu representam não são o contrário dessa autonomia?

Depende. Os museus são o livro da história. E no seu interior podemos suspender todos esses sistemas, mas não podemos escapar à sociedade e à economia. Eu gostaria de mudar a economia e não fugir dela. São sistemas necessários para garantir a nossa subsistência, mas a arte e os seus sinais podem servir para reorganizar esses sistemas humanos. Entendo hoje o meu trabalho como uma espécie de laboratório social que pode oferecer possibilidades alternativas aos políticos. Eu procuro manter uma posição de equilíbrio entre posições contrárias: e esta é a fórmula da criação. Juntamos dois elementos que não existiam antes para poder fazer aparecer uma outra e isto é o infinito: 1+1=3. Na performance que fizemos no MAAT era isto que estava em causa. E se percebermos isto podemos organizar o mundo.

A sua condição de artista histórico não diminui a sua liberdade?

Não sou eu que importa, são os meus sinais enquanto coisas autónomas. E só neste sentido é que a arte importa.

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