Pessimismo indígena

A mais recente compilação de crónicas de Vasco Pulido Valente corresponde ao período de maior maturidade intelectual e domínio da escrita do “colunista mais influente do país”.

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É como se VPV não se tivesse conseguido realizar na escrita de livros de história, acabando por encontrar a sua verdadeira forma de expressão em textos de fôlego curto, mas onde acaba por sobressair uma concepção estrutural do passado de Portugal Daniel Rocha

A mais recente compilação de crónicas de Vasco Pulido Valente (VPV) constitui um marco em três áreas. Antes de mais, corresponde ao período de maior maturidade intelectual e domínio da escrita do “colunista mais influente do país” – para citar as palavras de Miguel Pinheiro, organizador do livro, a respeito da colaboração de VPV na imprensa, sobretudo no jornal PÚBLICO. E, quando me refiro a maturidade, não falo de qualquer cedência a um consenso acomodatício. Pelo contrário, durante as duas últimas décadas, VPV mostrou-se cada vez mais coerente com a sua atitude de provocador da escrita, de denunciador da mediocridade, de crítico da incultura e da corrupção das nossas elites – a ponto de se ter acabado por enclausurar, ele próprio, num elitismo solitário.

Em segundo lugar, este livro é um marco no ofício de escritor exercido por VPV. É que não se trata apenas de mais um volume de crónicas, a somar aos anteriores: O País das Maravilhas (1979), Às Avessas (1990), Retratos e Auto-Retratos (1992) e Esta Ditosa Pátria (1997). De Mal a Pior confirma o lugar cimeiro que deve ser atribuído a um colunista exímio. O seu tempo será conhecido pelas crónicas de que foi autor, depois das gerações futuras esquecerem os nomes dos protagonistas dos factos políticos por ele comentados. Será escusado, por isso, insistir em apreciá-lo enquanto historiador, uma vez que as suas obras de história – pouco importa se muitas, se poucas e em que termos – não estão ao mesmo nível das crónicas que publica nos jornais.

Em terceiro lugar, como o próprio título indica, De Mal a Pior oferece um retrato pessimista de Portugal. Um pessimismo que assenta num proverbial azedume, a fazer lembrar os textos de Fialho de Almeida – mas, felizmente, prescindindo do estilo arrebicado deste último, quando se referia, por exemplo, à “degenerescência orgânica da gente (...) hereditariamente empulhecida por sessenta anos de avós políticos que fizeram do constitucionalismo uma canalhocracia estigmatizada a penduricalhos de Nossa Senhora da Conceição”. Na substância, que não na forma, mais próximo fica VPV do pessimismo de Fialho do que do estilo irónico de Eça ou da campanha pelo reaportuguesamento de Portugal feita por Ramalho Ortigão. De qualquer modo, o retrato do país por ele traçado, ao longo de tantas décadas, terá um dia de ser comparado a outras crónicas do mesmo formato, publicadas na imprensa, mas só algumas reunidas em livro, da autoria de Vítor Cunha Rego, Artur Portela Filho, José Cutileiro, Nuno Brederode dos Santos, Eduardo Prado Coelho, Miguel Esteves Cardoso ou Paulo Varela Gomes.

Que retrato do país emerge da leitura deste livro? Desde logo, uma visão de Portugal profundamente modelada pela cultura histórica do seu autor. É como se VPV não se tivesse conseguido realizar na escrita de livros de história, acabando por encontrar a sua verdadeira forma de expressão em textos de fôlego curto, mas onde acaba por sobressair uma concepção estrutural do passado de Portugal. Ou seja, uma interpretação, ainda que breve e simplificada, de estruturas que só são perceptíveis na longa duração, mormente ao longo dos dois últimos séculos, podendo mesmo recuar-se ao início da Expansão (p. 143) ou, pelo menos, ao século XVIII, de D. João V, Verney, Pombal e ao iluminismo inexistente em Portugal, para constatar o seu carácter recorrente (pp. 137-138, 141).  

É essa cultura histórica que permite a VPV compreender os acontecimentos do presente à luz do que se mantém estável numa tão longa duração. E é a partir desse mesmo ponto de vista que o cronista acaba por exprimir a sua indignação frente à ignorância da elite política actual, a começar por Paulo Portas, para quem a história começou com o 25 de Abril, alargando-se, se tanto, a Salazar (pp. 159, 165, 239, 241).

Ao lado de uma bem enraizada concepção da História, cujo sentido interessará perceber mais adiante, VPV revela a sua formação e interesses literários, que remontam ao início da década de 1960. Como o próprio recorda, foi em torno da revista Almanaque (1959-1961), publicada pela Ulisseia  de Figueiredo Magalhães, que se reuniram nomes como José Cardoso Pires, Alexandre O’Neill, Sttau Monteiro, José Cutileiro, Augusto Abelaira, Baptista-Bastos e o próprio VPV. Neste círculo, VPV iniciou-se  nas lides literárias, distinguindo entre os que detestou e os que admirou. Dos últimos, acima de todos, figura Cardoso Pires, que transformou o português “numa língua moderna” (p. 517).

Mas não foi só a Ulisseia e a revista Almanaque que contribuíram para a formação literária e intelectual de VPV. Na revista O Tempo e o Modo (a partir de 1963) e na editora a ela associada, a Moraes, de Alçada Baptista, encontrou “o embrião de uma futura aliança de centro-esquerda, que já existia em Itália e se esperava repetir aqui, quando a Ditadura caísse” (p. 521). Se Alçada – segundo o retrato certeiro de VPV, donde não estão ausentes algumas projecções pessoais – durante os anos de 1960 quis mudar o mundo, reformando a Igreja e criando um outro Portugal, no Outono da vida, transformou-se na expressão máxima do desencanto político, “isolado à esquerda e à direita”, acabando por sofrer “com o abandono de muita gente de quem se considerava amigo” (pp. 520-521).

Essa mesma cultura literária, que o autor recorda nas suas origens pessoais, com uma ponta de orgulho e saudade, é uma mistura de conhecimentos e experiências de escrita, de convívio mundano e arte da conversa. Assim sucedia com os jantares no Belcanto na companhia de Sttau Monteiro, com o qual VPV colaborou na tradução para português de Nove Contos (1966) de Salinger. O mesmo aconteceu com Cardoso Pires, a quem acompanhou pelas tascas do Bairro Alto à Baixa, “a discutir interminavelmente os méritos de romances vários, de que hoje ninguém se lembra ou sabe que existiram” (p. 519). A mesma cultura literária volta a assumar quando VPV recorre a Alexandre O’Neill, embora não o refira, para descrever o modo como a revolução se apagou depois de 1975: “Cada um tratou, e não mal, da sua vidinha. Da sua carreira e da sua bolsa […]. Cada um meteu-se na sua casca e tentou ignorar o que sucedia fora dela” (p. 533). 

O exercício de reconstituição das bases intelectuais de VPV, a partir das crónicas deste livro, poderia continuar. Por exemplo, interessava ter em conta: a sua educação familiar, nas ligações ao PC, mediatizadas pelo respectivo controleiro, durante a Ditadura, e depois o abandono de tais directrizes; a sua educação nos liceus de Lisboa, que no juízo do autor não foi assim tão má, sobretudo em comparação com a sua experiência na Faculdade de Letras, caracterizada pela “ignorância, o vício, o fanatismo e até a loucura”, o que contrastava com o ambiente permissivo do movimento estudantil e, sobretudo, com as possibilidades que lhe foram abertas pela sua permanência em  Oxford, onde se doutorou (pp. 530-531).

Com diferentes origens, como não poderia deixar de ser, as ideias de VPV, tal como aparecem expostas neste livro, dependem sobretudo da sua vasta cultura e da sua concepção da História. Como já foi referido, trata-se de uma visão estrutural da História de Portugal, atenta ao tempo longo, aos aspectos que se mantêm quase imutáveis e à consciência da “essencial contingência” dos sujeitos. A começar pela consciência do próprio autor enquanto sujeito da história, sobre a qual afirma: “sou um produto de forças que nunca controlei” (p. 531). O que equivale a dizer – sem querer virar o autor contra si próprio e, pelo contrário, procurando reconstituir o sentido das suas intenções – que dos projectos de uma história narrativa dos sujeitos, que muitos teimam em imputar a VPV, não há vestígio neste livro.  

E quais são as principais estruturas da história, sobretudo portuguesa, evocadas por VPV? Em primeiro lugar, há que considerar três factores interligados, podendo atribuir-se a cada um  deles o valor de estruturas de longa duração: o atraso económico português, que conduz à  reprodução de cenários de miséria, desigualdade e pobreza; depois, a debilidade de uma classe média que se tem mostrado totalmente dependente do Estado e, simultaneamente, a principal base do crescente papel assumido por este último; por fim, o peso exagerado do Estado, visível no número de funcionários públicos, uma “bizantina burocracia” (p. 90), mas também na redistribuição das rendas e na multiplicação das funções, em domínios como os da saúde, do ensino, das pensões, das obras públicas, logo, no aumento permanente da despesa que conduz à dívida externa e à ameaça permanente da bancarrota.

Dos factores acabados de enunciar, o mais repetido ao longo do livro é o da classe média, que é parasitária porque vive à conta do Estado, e que não se autonomiza, porque “a debilidade económica do país” não permite a sua emergência espontânea (pp. 55, 78, 95-96, 119, 132, 144, 160, 287, 302). A este respeito, VPV, sem ser original à luz da bibliografia da decadência e das análises do atraso, volta a pôr o dedo na ferida: uma sociedade onde não emerge uma classe média – outros diriam, uma burguesia – permanece arcaica. Na ausência de uma burguesia, as tentativas de modernização acabam por ser impostas a partir de cima, ou seja, do Estado, que se envolve no aumento da despesa, contribuindo inevitavelmente para o aumento do número de funcionários, da dívida e da já referida ameaça da bancarrota.

É, aliás, com uma aguda consciência sociológica que VPV escreve: “a sociedade não muda pela simples vontade política do poder” (p. 155). Por isso, é necessário começar por compreendê-la a partir das suas estruturas económicas atrasadas (caracterizadas pela “miséria atávica”, p. 301) e sociais (a começar pela já referida ausência de uma classe média autónoma mas também pela permanência de uma sociedade rural arcaica, bem como por uma “desigualdade atávica”, p. 288, que explica uma emigração constante). Sobre essas mesmas estruturas económicas e sociais, implantou-se um Estado, considerado um autêntico “Monstro”, que alimenta cerca de 700.000 a 900.000 funcionários públicos. 

Quais as mudanças que aconteceram nas estruturas que permaneceram estáveis ao longo dos séculos? VPV identifica diferentes ritmos temporais: uns mais estruturais, porque associados à continuidade; outros mais atentos às mudanças. Neste último caso, encontram-se as tentativas de modernização do país, quase sempre impostas a partir de cima e conduzindo ao alargamento das funções do Estado, logo, ao seu endividamento. Tentativas de aproximação de Portugal à Europa, sempre falhadas, fizeram-se sentir desde inícios do século XVIII (p. 141). Mas os programas políticos e governamentais de modernização tiveram lugar, sobretudo, com o Fontismo, na segunda metade do século XIX, e, após o 25 de Abril, houve  diferentes tentativas, sempre acompanhadas pela dívida e pelo défice, sobressaindo o cavaquismo. Em ambos os casos, o que sucedeu foi que a famigerada modernização contribuiu apenas para alargar a classe média, sempre na dependência do Estado, e, por consequência, a despesa e a dívida.

Pelo meio, sem veleidades de modernização, recusando mesmo “desenvolver o país”, esteve a preferência de Salazar pela “indigência” que “amansava e disciplinava o país” (pp. 143, 161). Mais: para se compreender a “crise” actual tem de se compreender a “ ‘pesada herança’ (verdadeiramente pesada) que nos legou Salazar”. Esta foi constituída por um “país muito pobre”, quanto à sua “população rural e da gente que se começava a acumular à volta de Lisboa e do Porto ou emigrava ilegalmente para a Europa” (p. 161). Ora, “além de uma guerra colonial (...) e de um exército monstruoso, tecnicamente atrasado, a sociedade que Salazar nos legou (fora meia dúzia de enclaves em Lisboa e Porto) era uma sociedade arcaica”, onde não havia nada  (p. 163). Assim, era “o regime paroquial e bronco de Salazar” (p. 519).

Se a “modernidade nunca verdadeiramente chegou a Portugal” (p. 140), o que acabou por aumentar foi “a dimensão da classe média” (p. 132). A ponto de se poder dizer que, se até 1974 “Portugal era um país agrícola” e “as crises só afectavam a classe média e a pequena burguesia de Lisboa e Porto”, “agora o regime tem de sustentar metade da população” (pp. 103-104).

Insista-se, ainda, no facto de que para VPV as tentativas de modernização dão, ciclicamente, lugar à “crise”. A crise da dívida, do empréstimo, recordada em relação a 1875 por Ega e o banqueiro Cohen, nos Maias (pp. 123-124). Ou, nas palavras de VPV, “a crise por que agora passamos lembra outras crises da mesma natureza no século XIX e no século XX com os mesmos furibundos protestos contra as despesas do Estado, contra o excesso de funcionários públicos, contra as clientelas e em geral contra a roubalheira” (p. 133).

Nesta mesma sequência, De Mal a Pior dá a conhecer um país que não se moderniza, que não se consegue reformar e que não tem emenda. Sublinhe-se, mais uma vez, o pessimismo da mesma interpretação. A reforma do Estado, por exemplo, que Passos Coelho entregou a Miguel Relvas foi prometida mas nunca chegou a acontecer (pp. 90, 93, 121). Aliás, tal não poderia ter sucedido, uma vez que o próprio Passos Coelho “deixou um exemplo de trapalhada, de superficialidade e de ignorância” (p. 128).

A interpretação que VPV faz da política, do Estado e dos sucessivos governos e seus chefes partidários resulta da sua cultura histórica estrutural. Por exemplo, Cavaco e os modernizadores anteriores, por pura ignorância, caíram na dupla ilusão de que a sociedade estava sujeita a uma mudança passível de ser conduzida por simples voluntarismo político e que os remédios para o atraso consistiam em mera disciplina financeira e nos investimentos do Estado em obras públicas (p. 155). O resultado de tantos tiros falhados foi trágico: o país não se modernizou, apenas se criou um Estado cada vez mais pesado, um autêntico “Monstro” (pp. 155, 236).

O mesmo Estado, que perpetuou a dependência e uma relação em círculo vicioso com a classe média, também se traduziu naquilo a que se chamava, no século XIX, a Fusão, equivalente mais tarde a uma geringonça, à união nacional ou ao centrão (pp. 104, 287). E, da mesma forma que a classe média, com os seus funcionários, depende do Estado, são também os partidos da Fusão que se alimentam do Estado, dele dependendo. E porque o Estado já não basta para apascentar tantas ovelhas, cresce o facciosismo dentro dos partidos (pp. 285-286).  O próprio CDS, em busca de uma ideologia liberal, acaba por ser um paradoxo, uma contradição, pois transformou-se numa direita liberal que espera tudo do Estado (p. 290).

Neste cenário de análise das grandes estruturas económicas, sociais e políticas, a educação –talvez por VPV gostar de ser do contra – constitui outro investimento errado do Estado e  dos proclamados modernizadores: “o desenvolvimento económico (...) não depende da educação e da formação de um povo” (p. 382). A relação de causalidade é estabelecida por VPV no sentido inverso, ou  seja, “a educação e formação do povo dependem de um desenvolvimento regular e crescente” (id.). Daí existir uma relação directa entre miséria, trabalho infantil e abandono escolar (pp. 371-372). Mesmo que seja difícil traçar as origens de uma tal ideia, num Randall Collins ou em Pierre Bourdieu, pessoalmente, não seria tão peremptório em relação aos termos da discussão estabelecida por VPV. Embora possa compreendê-la, à luz da argumentação do autor, pelo facto de a educação implicar mais um aumento da despesa pública, que conduz ao endividamento.

Muito poderia ainda ser dito, com base na leitura de um livro onde as ideias se multiplicam, acerca da correlação entre miséria do país e corrupção política (p. 342), do fanatismo de Cunhal, isolado do país que desconhecia, tanto quanto Salazar (p. 193-194), da devoção salazarista de Adriano Moreira (p. 244), das semelhanças entre os líderes partidários, de Barroso a Sócrates, de Seguro a Passos Coelho, de Santana Lopes a António Costa  (pp. 213, 247-248, 271, 273-274). Porém, estou convencido que é a capacidade de analisar as grandes estruturas que sustenta a argumentação principal deste livro de crónicas.

Uma cultura histórica que assenta não só na compreensão de processos sociais, económicos, políticos e culturais mas também numa capacidade para mobilizar os conhecimentos daqueles que sobre elas reflectiram. Entre estes últimos, VPV não esconde a sua admiração por Oliveira Martins, Antero de Quental e Eça de Queiroz. O uso que faz dos seus escritos, conforme mandam os critérios da redacção de textos curtos, é comedido e implica simplificações. A utilização das mesmas ideias da Geração de 1870, formando o “cânone da esquerda”, já fora tentada por António Sérgio (p. 152). Por que razão vem, agora, VPV referir-se a Sérgio como fazendo parte de um conjunto de “pensadores menores”? Suspeito que seja, mas não tenho a certeza, por também ele, VPV, seguir na peugada de Antero...

Mais: sem pôr em causa a qualidade das crónicas, de um ponto de vista tanto formal como da consistência das suas ideias, bem fundamentadas historicamente, não posso deixar de perguntar:  não foi VPV, sempre, um beneficiário e um colaborador do Estado? É que, não se esqueça, ele próprio foi funcionário público, investigador com provas dadas, membro de governos e deputado. Ou seja, sempre a mamar da teta da vaca que semanalmente criticou na imprensa. Será porque o Estado pode servir para alimentar uma elite, mas no resto não presta? Uma vez criados, os serviços nacional de saúde, de educação universal e a própria segurança social funcionam mal, mas não serão melhor do que nada. O empenho dos que lá trabalham, ou seja, dos funcionários públicos – que não podem ser vistos como meros parasitas – poderá ser reduzido ao mero pessimismo indignado de VPV?

Quanto à classe média, sobre a qual VPV parece ter uma relação de amor e ódio, é verdade que, nos últimos quarenta anos, ela cresceu baseada no aparelho de Estado. Mas, para haver hospitais, tem de haver  médicos, para haver escolas, professores, para haver uma administração, tem de haver funcionários, para ajardinar os jardins, tem de haver jardineiros e por aí adiante. As social-democracias avançadas têm a sua própria divisão do trabalho dentro do Estado e só no âmbito de uma conversa banal é que podemos achar que não precisamos de funcionários públicos. Que fazer, então, com turmas de 30 alunos, listas de espera para cirurgias graves, florestas abandonadas, centros de investigação vazios, um sistema pré-escolar em colapso e por aí adiante. Embora de emergência mais tímida, a classe média também surgiu no privado, talvez menos do que pudesse ter acontecido, mas com certeza que não foi por ter sido abafada pelo Estado.

Para concluir, uma nota mais de discordância. No livro, o termo “indígena”, quer como substantivo, quer como adjectivo, surge dezenas de vezes. A apropriação do termo supõe a comparação com o mundo colonial, onde o Estado pretendia civilizar o indígena, ao mesmo tempo que o explorava enquanto força de trabalho. Impossível, por isso, desligar o seu uso de um conservadorismo que é, na realidade, bastante anti-democrático. Mas, de um ponto de vista estilístico, a reversibilidade é um risco ou, para utilizar uma verdade que anda na boca das crianças, quem diz é quem é.

As origens da utilização do “indígena” remontam à Geração de 1870. Fialho e Alfredo Gallis também recorreram a ele para designar os portugueses, nos seus comportamentos mais arcaicos. E Adolfo Coelho, que também integrou as Conferências do Casino, recordou em 1915 o programa emancipatório da sua geração: “Não se pretendia então voltar atrás; mas sim rasgar novos horizontes, combater o indígena, o compatriota bestializado nos hábitos tradicionais, nos velhos preconceitos” (Boavida Portugal, Inquérito à Vida Literária Portuguesa, Lisboa, 1915, p. 80).

Porém, foi nos Maias (1888) que surgiu um uso mais literário – com muitos sentidos, alguns deles irónicos e sardónicos – do termo indígena. É Ega, no seu evidente provincianismo, quem pretende “impressionar o indígena” e, por isso cola o termo aos portugueses. O Ega de quem Carlos da Maia tanto se ria. O mesmo Ega que aludia ao “indígena” da Rua dos Fanqueiros, quando este via as excentricidades do Craft como um sinal de “doidice”. Enfim, o Ega que dizia que “a civilização custa-nos caríssima (...); e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas (...). Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe”.

Em suma, a ironia implícita no termo indígena, a que Eça recorreu para caracterizar João da Ega, desaparece na enxurrada pessimista de VPV. O seu uso e abuso também não ajudam a manter viva a esperança em projectos políticos de emancipação e de criação de uma sociedade mais justa e livre. É que as novas gerações não têm que desistir antes de começar, nem de se conformar precocemente com a “vidinha”. Aliás, duvido que tenham direito a ela...  

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