Passeio pela casa dos mortos

As fotografias de Nuno Cera no Cimitero di S. Cataldo são habilmente marcadas pelas linhas de sombra, que ora nos sugerem a marcha do tempo, ora nos desorientam no espaço.

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As fotografias de Cera são marcadas por linhas de sombra, que ora nos sugerem a marcha do tempo, ora nos desorientam Pierre le Fou

A editora chama-lhe fascículos, um pouco como se não quisesse elevar demasiado a expectativa, numa atitude despretensiosa e dessacralizante do objecto que justamente celebra e concretiza, o livro (ou, supostamente, uma parte dele). De dois buracos da lombada de cada volume saem argolas de metal para nos lembrar de que estamos perante uma parte da obra, e de que é possível juntá-lo a outros que já se publicaram. Nas sobrecapas monocromáticas há aberturas tipo nuvem (sempre instáveis, flutuantes), recortadas em função do espaço ocupado pelos diferentes títulos e autores. E esta eloquente ousadia de design gráfico é talvez o primeiro sinal de sofisticação e de espírito irrequieto de uma colecção de livros de fotografia que já demonstrou uma tendência para abraçar o risco, a deriva e a descoberta.

Livrinho a livrinho, a Pierrot le Fou — nascida em 2012 entre o Porto e Basileia, pela mão de Dulcineia Neves dos Santos, Susana Lourenço Marques, Bruno Figueiredo e Pedro Bandeira — vai erguendo uma identidade caleidoscópica, fazendo suceder obras de diferentes origens formais e propósitos criativos muito variados. Embora os nove fascículos já publicados apresentem uma tónica na arquitectura e no urbanismo — ou de uma forma mais genérica nos usos que fazemos do espaço —, a acumulação de fólios pode resultar em combinações muito variadas e interessantes, tanto na forma como no conteúdo, respeitando ou não a ordenação numérica crescente que nos é proposta. A sensação que fica depois de abrirmos todos os volumes é a de que não só podemos como devemos baralhar a ordem estabelecida, procurando as nossas ligações entre imagens, a nossa colecção particular de ínfimas partes de registos visuais do mundo.

Apesar de se apresentar através desta lógica fascicular, segundo a qual tradicionalmente existe um princípio e um fim, certo é que a Pierrot le Fou não nos dá qualquer sinal do que poderá ser o final desta sequência (ou sequer quando). O que poderá significar que a editora assume à boa maneira aby-warburgiana a edificação do um atlas de imagens imbuído de um sentido de incompletude, uma colecção sem fim.  

O primeiro tomo desta linha de transmissão entre fascículos (Finds, Benjamim Kruger, de 2014) começa com uma pequena série de fotogramas retirados dos screen tests videográficos de Andy Warhol, o pai da deturpação e da apropriação de imagens, de quem se publica ainda (de uma forma semificcionada) a última entrevista que concedeu, divulgada na revista Flash Art em Abril de 1987, em que reconhece: “I don't get mad when people take my things.” É um começo apropriado, se considerarmos Warhol um dos maiores agitadores da imagem que o mundo já conheceu. E dá o mote perfeito para o segundo volume (Images of a Given Story, de Dulcineia Santos e Pedro Bandeira, 2014), que se apropria de um conjunto de slides anónimos para a criação de novas imagens, sublinhando uma condição de latência de todas as fotografias, que parecem sempre prontas a renascer, noutros contextos, noutras histórias (fazer renascer fotografias é outra forma de fotografar).

Ao longo dos nove fascículos já editados, a Pierrot le Fou já tocou em muitas manifestações do fotográfico, que vão desde o arquivo (A Arquitectura Moderna Foi para o Céu, Teófilo Rego, 2016) à arte contemporânea (Aquele Estranho Dia Escuro, de Dinis Santos, 2014), da experiência do fotógrafo com os lugares (Lacaton et Vassal: mode d’emploi, Paulo Catrica, 2014) à revelação de uma autora e de uma extraordinária reportagem fotográfica (Quem te Ensinou?  Ninguém, Elvira Leite, 2016), um dos mais surpreendentes volumes, exemplo de como está por fazer uma história alternativa da fotografia portuguesa.

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Pierre Le Fou

O último volume, recentemente publicado, é dedicado às fotografias que Nuno Cera (Beja, 1972) captou no Cemitério de San Cataldo, em Modena, Itália, quando, em 2009, visitou a obra-prima inacabada de Aldo Rossi (1931-1997), na companhia de Diogo Seixas Lopes, arquitecto, historiador, curador e crítico de arquitectura, precocemente desaparecido em 2016, aos 43 anos, pouco depois de ter publicado Melancholy and Architecture. On Aldo Rossi (Park Books, 2015). O livro de Seixas Lopes exibe na capa uma das mais extraordinárias fotografias que Cera captou no Cemitério de San Cataldo: a sombra traça uma linha diagonal de uma ponta a outra da imagem, atravessa o chão despido e toca num dos vértices do edifício, que, por sua vez, surge enquadrado como se nos desse um abraço com um manto crepuscular, uma lembrança de tempus fugit no meio de uma construção encruzilhada de aberturas, um espaço dúbio (por onde se entra? por onde se sai?).

As fotografias de Nuno Cera em Cimitero di S. Cataldo são, aliás, habilmente marcadas pelas linhas de sombra, que ora nos sugerem a marcha do tempo, ora nos desorientam no espaço. Paradoxalmente, são estas linhas condenadas à rigidez e à imobilidade fotográficas que, simultaneamente, nos dão a dinâmica do tempo, a sensação de perenidade e fluidez, como as doces ilusões de-chiriquianas que sonhavam com a “eternidade de um momento” ou com o “movimento imóvel”. Através desta sequência de imagens vemos também como as sombras dominam os espaços vazios, e como parecem os únicos seres que os habitam, complementando-os, adulterando as suas formas, reconfigurando a sua visualidade para além do presente, sugerindo uma extratemporalidade, outra realidade que não aquela que estamos a ver. É uma visão com um pendor metafísico, uma aproximação depurada, seca e cirúrgica capaz de nos provocar sentimentos de estranheza e de mistério perante um lugar que, inevitável e genericamente, tão bem conhecemos.

Mas antes daquela fotografia de capa — que tanto nos atira para os limites do que é físico (material, corpóreo) como nos sugere o infinito (através de uma linha de sombra que começa e acaba para lá da imagem, no desconhecido) —, Cera apresenta-nos logo no arranque deste fascículo as duas faces de S. Cataldo: a novecentista, que começou a ser projectada e construída por Cesare Costa em 1858; e a contemporânea, continuada por Aldo Rossi em 1978 (mas também inacabada). São duas faces de um mesmo universo fantasmagórico, mas de atitudes diferentes para com a “arrumação” da morte no espaço. Se Costa espalha a inscrição dos símbolos da morte a céu aberto, numa paisagem onde as lápides e as cruzes procuram diferenciar-se e individualizar-se, Rossi ordena-os em longos corredores seriais, em prismas, átrios e cubos, em “volumes fragmentados”, como lhes chama o arquitecto André Tavares, num texto que acompanha as fotografias de Cera. Esta relação porosa que a obra de Rossi estabelece com o espaço, muito bem plasmada pelo fotógrafo, pode ser entendida como uma forma de o arquitecto nos levar “para dentro” sem nos apercebermos realmente de que estamos a entrar num sítio qualquer, um encaminhamento subtil para um confronto porventura mais desafectado com a mortalidade. É um lugar neutro, a caminho da abstracção, que condiz com as aspirações de Aldo Rossi para S. Cataldo: “Para lá das exigências municipais, das práticas burocráticas, do rosto do órfão, do remorso das relações privadas, da ternura e da indiferença, este projecto para um cemitério condiz com a imagem do cemitério que cada um de nós possui.”

As imagens novo-objectivistas de Nuno Cera conseguem dar corpo a esta aspiração depurada na medida em que procuram dar protagonismo à extraordinária plasticidade com que foram trabalhadas as formas geométricas fundadoras (na senda do “regresso à ordem” que, entre outros movimentos, ajudou a fundar o Novecento italiano). E sublinham de maneira eficaz o pragmatismo espacial da obra de Rossi transportando-nos para um lugar “duro e belo”, na descrição certeira de Diogo Seixas Lopes para a revista Uncube (2015).

As fotografias com pontos de fuga longínquos (e nas quais os túmulos surgem alinhados, repetidos e sobrepostos) são posicionamentos procurados nas imagens de Cera, contribuindo para nos dar uma visão talvez mais impessoal destes espaços, onde a morte surge como uma realidade linear, geral, sem identidade. Contudo, a uma certa frieza com que somos conduzidos por entre pavilhões mortuários, opõe-se uma capacidade de nos propor enigmas (dentro/fora; novo/velho; princípio/fim; sombra/luz; vida/morte), fórmula que, sem entrar em joguinhos das escondidas, acaba por funcionar como gancho para nos atermos nas imagens e de procuramos nelas um pouco mais do que aquilo que nos mostram à primeira vista. Para descobrir, por exemplo, a sombra de alguém projectada horizontalmente no chão de um corredor longilíneo onde se alinham cinco fileiras de gavetas tumulares (depois de descobrirmos essa sombra é nela que nos fixamos). Ou para perceber que a única figura humana directamente representada em todo o livro (Diogo Seixas Lopes?) não surge acidentalmente, mas como se viesse conferir presença e escala humana a uma série de imagens que não são “apenas” sobre a obra de um arquitecto reconhecido e (agora) admirado.

É difícil atravessar este curto e incisivo livro da Pierrot le Fou sem um sentimento de melancolia provocado por imagens que procuram de uma maneira frontal o confronto solitário com a finitude e com a memória dos que partiram. Como também se percebe que Nuno Cera quis dar continuidade e ainda mais visualidade fotográfica (em jeito de homenagem) à melancolia da arquitectura em Rossi teorizada por Diogo Seixas Lopes na monografia já citada. Se essa ambiência melancólica (a fazer lembrar trabalhos como o de Bernard Plossu, em La Hora Inmóvil, La Fábrica, 2016) é uma constante, também o é a presença de Seixas Lopes. O que não deixa de ser uma triste ironia é que o livrinho Cimitero di S. Cataldo nos recorde que estamos perante três e não duas obras inacabadas: a de Cesare Costa e Aldo Rossi, como autores do enigmático cemitério de Modena; e a de Diogo Seixas Lopes, como arquitecto e proeminente investigador e teórico da arquitectura.

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