"Para a maioria dos colonos, a possibilidade de abandonar África era nula"

Estudo antropológico junto de famílias de colonos procura cruzar histórias de vida com a história da colonização e descolonização portuguesa em África.

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Família Freitas Munheiro no Huambo, em 1962. Chegou a Angola no século XIX e dispersou-se após a descolonização entre Portugal, Brasil e EUA DR

A guerra colonial passou desapercebida a muitas famílias portuguesas em Angola e Moçambique, alheadas do conflito e surpreendidas depois pelo processo de descolonização decorrente do 25 de Abril de 1974.

O fim do império significou o regresso a Portugal de centenas de milhares de cidadãos nacionais, pejorativamente apelidados de “retornados”, iniciando um processo de integração em muitos casos traumático e com efeitos ainda no presente. O “retorno” foi precisamente o último tema do painel “democratização e descolonização” que encerrou o primeiro dia da conferência O Ano do Fim. O Fim do Império Colonial Português, que terminou na sexta-feira no Instituto de Ciências Sociais (ICS), em Lisboa.

“Muitas destas famílias [de colonos] receberam o 25 de Abril em Portugal com indiferença, acabando por ser obrigados a regressar por força dos conflitos armados internos da pós-descolonização, nomeadamente em Angola”, explicou Elsa Peralta, antropóloga e investigadora do ICS. A guerra colonial que antecedeu as independências foi seguida com igual distanciamento. “Na maior parte das entrevistas que realizei junto desta população, não se verifica um discurso que permita pensar que existia uma noção do que estava a acontecer. Nem sequer havia consciencialização que ocorria um conflito armado”, revela, ressalvando que esta indiferença não pode ser generalizada a toda a sociedade colonial.

A natureza do regime que a revolução de Abril encerra em Portugal e o seu minucioso controlo da informação junto das populações africanas poderá explicar em parte este distanciamento, segundo defendeu António Costa Pinto, historiador e organizador da conferência, que alerta para a ausência de grandes estudos sobre esta temática. Elsa Peralta alarga o leque de hipóteses ao facto destas populações estarem concentradas em centros urbanos, longe dos palcos do conflito, e à ausência de qualquer tipo de politização e envolvimento, que potenciava o desinteresse.

“É difícil aferir e podem existir várias explicações”, salienta a antropóloga que iniciou esta investigação há cerca de ano e meio, no âmbito do desenvolvimento do projecto “Memória, esquecimento e pós colonialismo: representações públicas do Império Colonial Português”. “Este trabalho segue a longa tradição tipológica das biografias familiares, escritas a partir da recolha de dados etnográficos e de entrevistas em profundidade. Uma abordagem que permite compreender como forças sociais e quadros culturais e históricos são incorporados com a experiência individual. Ou seja, a partir de experiências de vida concretas, pretende alcançar estruturas sociais, políticas e históricas mais amplas.” Deixam de ser apenas histórias de vida, para se tornarem também na história da colonização e descolonização portuguesa em África.

Apesar das quatro décadas decorridas sobre as independências e o regresso forçado a Portugal destas populações, na sua maioria brancas, mas também mestiças e negras, Elsa Peralta encontrou muitas resistências para revisitar este passado, que deixou feridas perenes que ainda perduram, em muitos casos. “Muita gente recusou-se a falar, não só por receio de exposição, mas simplesmente por não quererem recordar. Há um ressentimento muito grande, privado, mas também com uma face pública, expresso quando chega o momento das eleições, por exemplo. Não imagino estas populações a votarem em candidatos ou linhas políticas próximas de figuras que identificam como responsáveis pelo processo de descolonização. Não desculpam o que aconteceu.”

Um passado traumático, que causa mágoa e ainda não se reconciliou com o presente. “Os ressentimentos que emergem das entrevistas são geralmente três, começando pelo rancor relacionado com o carácter súbito e inesperado da descolonização e do regresso a Portugal. Para a maioria dos entrevistados, a possibilidade de virem a abandonar África era nula, mesmo depois do 25 de Abril. Sentem-se inconformados e mesmo ludibriados pelo processo das independências conduzido pelas forças revolucionárias em Lisboa”, esclarece Elsa Peralta. A perda dos bens materiais deixados para trás e o chamado “desapossamento”, ou perda da legitimidade aos olhos do Estado e da sociedade, são igualmente factores de ressentimento, segundo a investigadora.

E depois, houve os traumas de um regresso súbito e inesperado a Portugal, onde foram recebidos, em muitos casos, com hostilidade e desconfiança por uma sociedade então emersa num processo revolucionário, marcado pela forte radicalização ideológica em torno da questão colonial. “Aqui são apelidados de ‘retornados’, que muitos consideram, na melhor das hipóteses, um eufemismo para nomear uma população de refugiados das guerras civis em África. Na pior das hipóteses, consideram-no um termo ofensivo e persecutório que permitia rotular parte da população nacional como conivente com a doutrina salazarismo e da colonização.” Para outros ainda, a expressão seria apenas inexacta, visto já estarem em terras africanas há várias gerações.

Inquestionável é que muitos dos testemunhos recolhidos por Elsa Peralta contrastam claramente com o quadro traçado para esta população, que sugere a sua integração positiva na sociedade portuguesa: “Esta suposta história de sucesso não é corroborada por muitos dos entrevistados, que preferem salientar o efeito traumático, marcado por uma integração muito difícil, que, em muitos casos, ainda hoje não está completada.”

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