Otelo num estendal da Madre de Deus

Mais de um ano depois de começarem a trabalhar sobre Shakespeare, os alunos de uma escola do bairro lisboeta estreiam Anatomia de Otelo no Teatro da Trindade. Cristina Carvalhal dirige esta peça em que os actores se procuram a si mesmos.

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Um grupo de alunos da Escola Básica 2, 3 Luís António Verney passou os últimos 16 meses a trabalhar a partir das personagens de Otelo ESTELLE VALENTE
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Muitos dos alunos desta escola do Bairro da Madre de Deus, em Lisboa, provêm de famílias desestruturadas ESTELLE VALENTE
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Cristina Carvalhal conduziu esta adaptação livre de Otelo ESTELLE VALENTE

Otelo e Desdémona presos com molas da roupa a um estendal. Não os próprios, claro, mas os seus nomes, escritos à mão em folhas de papel dobradas e colocadas sobre as cordas. As personagens de Shakespeare que contam a história de Otelo, o Mouro de Veneza, trazidas assim à terra, ao corriqueiro, à vida quotidiana de alunos do 6º ao 9º ano de uma escola do Bairro da Madre de Deus, a Escola Básica 2, 3 Luís António Verney. A imagem indicia o que têm sido os últimos 16 meses desta dúzia e meia de alunos: desde finais de 2014 que Shakespeare, Otelo, Desdémona, Iago e Cássio estão pendurados nas suas vidas, tornaram-se uma presença constante.

Cássio cambaleia bêbedo, jura que o seu estado é outro, e caminha para uma troca de argumentos físicos com Montano. Mas fá-lo depois de um rap interpretado colectivamente e depois de cada um propor aquilo que poderia fazer no lugar de Otelo – a fatídica história de amor de Romeu e Julieta, um romance transportado para cenário de ficção científica, uma versão de Frozen – A Rainha do Gelo, uma peça para dois humanos e um cachecol ou um Feiticeiro da Má-Língua em que a língua fica presa e o enredo não avança.

Mais do que uma adaptação livre de Otelo, a Anatomia de Otelo que se estreia este sábado no Teatro da Trindade, em Lisboa (segue depois para Faro, a 13, Cartaxo, a 19, Ovar, a 21, e Porto, a 27), é um diálogo destes alunos com questões suscitadas pelo texto de Shakespeare. Em palco, mais do que Otelo, Desdémona ou Iago, continuam a chamar-se Ana, Leonor ou Rossi.

“Há todo um exercício de leitura em voz alta e de compreensão para a partir daí levantarmos alguns temas, pequenas histórias”, contava a encenadora Cristina Carvalhal ao PÚBLICO em Março de 2015. “É um pretexto para eles falarem de si, para se encontrarem e ao mesmo tempo irem desenvolvendo competências pessoais e sociais.” Na expectativa de, com isso, gerar igualmente “um maior interesse pela escola, pelo mundo, por eles próprios, e que isso se reflicta numa maior assiduidade e num melhor aproveitamento escolar”.

Sem uma imposição rígida de Otelo, o processo é o de uma descoberta do que podem fazer em conjunto, em que se estabelece quase por acidente a ligação com outros conhecimentos. “Às vezes damos por nós a falar de política, geografia ou geometria em cena”, diz Jacinto Lucas Pires, o dramaturgo que acompanha a criação de Anatomia de Otelo. Outras vezes, vêem em grupo vídeos de peças de teatro, coreografias, interpretações musicais, num processo complementar de despertar uma sensibilidade artística.

Anatomia de Otelo é o momento de maior visibilidade de um projecto bastante mais amplo desenvolvido no âmbito do programa Pegada Cultural, promovido em Portugal pela Direcção Geral das Artes. E resulta de uma fusão de duas candidaturas originais, juntando a Academia de Música de Lisboa – Acordarte, o grupo de teatro Causas Comuns e a Companhia Olga Roriz. As duas primeiras estruturas vinham já desenvolvendo projectos com a escola, aproveitando a sua natural vocação para o ensino das artes enquanto elemento construtivo na vida de um bairro com reconhecidos problemas sociais.

“Estamos numa escola em que grande parte dos miúdos provém de famílias muito desestruturadas, e muitos deles encontram neste tipo de actividade um refúgio muito importante para as suas vidas”, comenta Rui Fernandes, director da Acordarte. “Quando os vemos em palco, sabemos que não só estão a fazer uma coisa importante em termos absolutos e abstractos, mas também que há uma parte afectiva e pessoal. É muito emocionante ver miúdos que têm muita dificuldade em exprimir afectos com toda aquela liberdade.”

É tão bonito

“Qualquer dia és uma estrela da televisão!” ouvia-se no final da primeira apresentação pública do projecto, em Março do ano passado. No ginásio da escola, diante de colegas e professores, a Anatomia de Otelo mostra-se pela primeira vez, timidamente ainda: uma ansiedade eléctrica que se detecta à vista desarmada no frenesim que toma conta da entrada do palco. É ainda uma versão curta, a testar soluções, a perceber como se comportam com assistência estes miúdos – mais elas do que eles, na verdade, que o futebol arranja sempre maneira de roubar alguns interessados – seleccionados através de um casting, depois de a curiosidade lhes ser aguçada por um folheto em que se explicava que este era um projecto de longa duração.

“É difícil fazê-los perceber que isto é uma coisa colectiva e que dependemos todos uns dos outros”, relata a directora artística. “Há alguns que vão faltando, mas têm as suas razões porque estão com problemas em casa ou têm de tomar conta dos irmãos mais pequenos ou de ajudar a mãe. Tentamos perceber isso, mas não podemos ceder muito porque é necessária disciplina.” Passado um ano, na antevéspera da estreia oficial, o ensaio na escola revela as mesmas caras, com um par de excepções, prova de que as desistências foram mínimas. O futebol parece não ter feito mais baixas.

Talvez porque aquilo que Cristina Carvalhal diz ser trabalhado, antes de mais, é a autoconfiança e as ferramentas para que cada um possa perceber-se melhor, permitindo-se um tempo para se sentir confortável com a sua pele, sem medo do ridículo. Cristina Carvalhal e Jacinto Lucas Pires – a que se juntam Catarina Câmara (bailarina), Nuno Feist (músico) e António Jorge Gonçalves (ilustrador) – confessam a emoção de “testemunhar um acontecimento” quando vislumbram nos ensaios algum gesto de imprevista beleza. Essa noção, por parte dos alunos, foi também uma conquista progressiva. “Uma vez”, recorda Jacinto, “uma delas chegou atrasada ao ensaio, viu os outros no palco e no final disse ‘Vocês não imaginam, mas o que estamos a fazer é tão bonito’ – como se ela, ao estar dentro, não o soubesse.”

Em palco, Anatomia de Otelo é um espectáculo de teatro, de movimento, de música, cruzando várias valências e trazendo também alguns alunos de instrumentos de cordas da escola para o espectáculo. “Aliás, a estrutura tem a fluidez de um musical, de uma coreografia”, opina Lucas Pires. Ao ritmo dessa coreografia, os miúdos vão caminhando até ao ponto em que retiram do estendal máscaras com as suas próprias caras. Como que a dizer-nos que, mais do que qualquer personagem, representam-se a si mesmos.

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