Os espíritos do estádio

Uma análise iconológica comparativa das fotografias dos atletas nossos contemporâneos com as das primeiras décadas do século passado mostra-nos um aspecto muito curioso: enquanto os atletas de outrora pareciam posar com uma atitude de caçadores orgulhosos (como notou Hans Ulrich Gumbrecht, um professor de literaturas românicas e comparadas na Universidade de Stanford, na Califórnia), os atletas actuais são atracções eróticas fascinantes, hipóstases de uma corporeidade olímpica que já não é a dos antigos “deuses do estádio”, mas a dos escultores do seu próprio corpo hipertélico que sabem muito bem entrar no sofisticado jogo da exibição da sua bela obra, tão admirada quanto os triunfos desportivos. Nas vésperas da abertura dos jogos olímpicos do Rio de Janeiro, o jornal italiano Corriere della Sera apresentou uma antologia de mais de 60 corpos de atletas que iam estar no Rio, com base no critério da beleza e do apelo erótico. Era uma espécie de calendário Pirelli. Os atletas de algumas modalidades desportivas superaram de maneira avantajada os actores e actrizes que outrora detinham quase exclusivamente o direito à condição de sex-symbols. Eles oferecem, em relação aos actores, uma dimensão que tem um poder magnético: os seus movimentos, em competição, têm uma expressiva eloquência patética. Ronaldo, por exemplo, compreendeu isso muito bem e coroa todos os seus golos com uma mímica animalesca, selvagem, que se contrapõe ao seu corpo culturalizado no mais alto grau: de um lado está o corpo que pensa e que se pensa; do outro, está o corpo onde se polarizam as mais arcaicas fórmulas de pathos que sobrevivem na iconografia que atravessa a nossa História desde a Antiguidade. Algumas modalidades desportivas convergiram assim para uma apoteose fotogénica e telegénica. O privilégio que obtiveram nestas formas de representação iconográfica está em falta na representação literária e no pensamento. O desporto, em geral, não tem sido um tema fecundo da literatura e muito fraca é a irradiação de uma filosofia do desporto (quem diria que o responsável da edição crítica das obras completas de Eduardo Lourenço, João Tiago Lima, da Universidade de Évora, se move também neste domínio tão minoritário?). Gumbrecht, a quem fiz referência no início e que é um eminente teórico do fenómeno desportivo, verificando este afastamento da literatura em relação ao desporto e à figura dos atletas, mostra como a literatura contribuiu para a institucionalização da famigerada dicotomia espírito/corpo, cuja história é longa e persistente. Por mais que pareça uma daquelas dicotomias que a filosofia contemporânea “desconstruiu” com carácter de urgência, como muitas outras dicotomias, a sua resistência é enorme e não nos livramos facilmente dela. Hipostasiá-la é, aliás, um dos desportos preferidos dos intelectuais, que geralmente vêem os desportistas como corpos maquínicos ou animais. A inteligência do corpo é para eles uma coisa estranha. No início do século XX, diz Gumbrecht, a disputa entre os espectáculos desportivos, por um lado, e a literatura, por outro, parece ter alcançado o nível que ainda hoje detém. Brecht, que foi contemporâneo de uma tentativa de assimilação do espectáculo desportivo ao espectáculo político fascista, detestava “o desporto como higiene” e como “criatividade espiritual”. Curiosamente, o seu desporto favorito era o boxe. Baudelaire tinha visto as batalhas literárias utilizando a metáfora da esgrima. Desporto sim, mas manhoso como uma “flor do mal” e gracioso como uma dança. Tudo o resto continua ainda hoje a ser considerado um bruto “potlach”.   

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