Os candeeiros

As metáforas da luz talvez expliquem porque perdemos o olhar entre candeeiros quando buscamos uma frase, uma solução para a sempre suplicante literatura. Fixamos espaços vazios, de onde se ausentam referências. Os tectos são páginas limpas cuja única palavra é candeeiro. Uma palavra que acende.

Costumo lidar com a espera deitando-me a pensar para longe. Percorro este bendito tecto milhares de vezes sempre a imaginar outros lugares e modos de dizer. Queria saber como se diz cada coisa, porque há muito que ainda não tem nome e há ideias que não conseguimos ter. Os tectos nunca esperariam servir para fugas, outros escritores talvez fixem paredes, os filhos, a escuridão, a imaterialidade da música. Eu fujo pela brancura. Sinto-me invariavelmente em corrida porque a Literatura mo pede. Pago o esforço. Posso suar, experimentar um calor estranho, uma febre. Já me disseram que escrevo por fúria e fico com um semblante aflito. O prazer não me retira a urgência, uma certa zanga perante todo e qualquer impasse, perante toda e qualquer espera.

Eu sei que crio saudades do frenesi inexplicável da escrita e não vivo sem esse regresso quotidiano. Mas desenvolvo um melindre crescente com a expectativa e o policiamento necessário perante a redundância e a reincidência. Ao longo dos anos, depois de tantos livros, os textos sentem-se convocados por outros, como se estabelecessem uma conversa inesperada, na qual podemos ser ultrapassados. Não quero que os meus livros estejam sempre a conspirar uns com os outros. Gostaria que eles se desconhecessem em absoluto, como animais de espécies distintas. Com o tempo, o mesmo tecto branco parece adquirir significados constantes, ideias que ficam e que impedem a brancura total.

Com os anos, sabemos bem o que somos. Estamos habituados às manhas e às desculpas, também nos comovem menos as surpresas, porque quase dominamos o território das surpresas. Temos uma intuição para o lugar onde estão guardadas à espera do nosso empenho. Com o tempo, escrever livros é uma arte de que somos capazes. É glorioso, claro, mas não apaga a saudade do inesperado de outrora. Daquela dúvida inicial de estar eventualmente apenas a corresponder a uma obstinada vontade, e não à Literatura. Quem faz arte sem controlo não faz arte, apenas se subjuga a uma paixão. E, acreditem, é muito mais incrível estar apaixonado do que fazer arte.

As paixões duram dois anos, ao que dizem os senhores das ciências. São desequilíbrios hormonais que a natureza inventou para protecção da espécie. Enquanto nos apaixonamos por alguém, queremos forçosamente copular e a espécie lá se vai garantindo. De todo o modo, se gostar assim de algo é um desequilíbrio, criar por absoluto é um desequilíbrio igual. Abandonamos família e amigos, arriscamos empregos e o estômago quando, por um imperativo inexplicável, se nos coloca a oportunidade de uma obra diante.

Hoje, diante do meu tecto, o candeeiro que eu próprio dourei está aceso, recordo o bruto que fui. Estou convencido de escrever agora livros muito melhores do que escrevia antes, mas lamento a sapiência possível. Quem encontra no território da ignorância vive da avidez e regozija a cada instante. Quem encontra na maturidade do seu percurso vive da ponderação e a cada instante percebe que, se esperar, o texto decanta, afina, comparece como um animal autodeterminado, alguém. Quase nos fala, nos contempla.

Em torno de um novo romance, o que me comove é a graça inusitada de divergir. Entro pelo desconhecido à procura de todas as coisas e descubro sempre que, no desconhecido, me encontro. Já lá estava bem antes de saber o caminho para chegar. Somos espantosos, os seres humanos. Ubíquos e intensos. Talvez carentes. Capazes de pertencer aos lugares mais terríveis apenas porque estão vazios. O que se tem vazio parece solicitar-nos. Responsabiliza-nos. Invariavelmente pelo perigo adentro. Afinal, como nas paixões.     

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