Nós, os belos adormecidos

Este é o filme de Apichatpong que “salta” para o lado de cá do ecrã, que transforma a sala em delicado tratamento e apuramento dos sentidos dos seus belos adormecidos: nós, espectadores, voluntários deste sono profundo.

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Não há nada de especialmente diferente neste último do cineasta tailandês em relação aos seus anteriores? A matéria de um filme continua a ser uma sucessão de camadas de vivências sobrepostas, os sonhos e a “vida real” tendo o mesmo estatuto.

As várias vidas que se vivem acontecem na terra onde nasceu Apichatpong Weerasethakul, onde os pais exerceram a profissão de médicos, onde ele frequentou a escola, onde descobriu o cinema. É tudo isso junto que faz materializar o hospital deste filme, Cemitério do Esplendor, onde um grupo de soldados, acometidos de misteriosa doença que os faz cair num sono profundo (uma forma de dissidência?), estão a ser velados.

Nada de radicalmente novo em relação à experiência do cinema de Apichatpong?

Não, se se imaginar uma linha a avançar horizontalmente e a acumular. Sim, se estivermos disponíveis para a forma como o cineasta trata de nós, em profundidade: o cinema é um cemitério de esplendores, entre o que se passa no ecrã e o que acontece na sala não há diferença de natureza. Não sendo a obra-prima do realizador (O Tio Boonmee que se Lembra das suas Vidas Passadas, 2010), há momentos de uma serena evidência: as vidas que estamos a ver no ecrã são também as nossas, a dos que estão a ver o filme. Se calhar, afinal, há algo que distingue Cemitério do Esplendor dos filmes anteriores de Apichatpong Weerasethakul. Este é aquele que “salta” para o lado de cá do ecrã, que transforma a sala de cinema em delicado espaço de tratamento e apuramento dos sentidos dos seus belos adormecidos: nós, os espectadores, voluntários deste sono profundo.

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