Orelha Negra têm a máquina do funk a postos

Na Primavera colocarão o terceiro álbum nas lojas. Mas este sábado, em Lisboa, e a 30 de Janeiro, no Porto, darão a ouvi-lo na íntegra em palco. É isso. Os Orelha Negra têm novo álbum, querem partilhá-lo e fomos ouvi-los ensaiar.

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Francisco Rebelo no baixo e João Gomes nos teclados, na sala de ensaios. Guilherme Marques

O método para eles não é novo. Os Orelha Negra ainda estão a ultimar o seu terceiro álbum, que deverá ser lançado na Primavera, mas este sábado irão apresentá-lo desde já, em exclusivo, ao público que se deslocar ao Centro Cultural de Belém em Lisboa. A 30 de Janeiro repetirão no Hard Club do Porto.

Antes, em exclusivo também, tocaram-no ao vivo só para nós. O local foi a sala de ensaios. Foi aí que encontrámos João Gomes nas teclas, Francisco Rebelo no baixo, Sam The Kid na maquinaria, Cruzfader no gira-discos e Fred Ferreira na bateria. Todos integram outros projectos, mas quando se juntam são uma máquina de ritmos contemporânea atingida pela memória da música negra, criando uma combustão instrumental de funk, soul, jazz e hip-hop.

O novo álbum, pelo que ouvimos, manterá essa identidade, mas sem que o quinteto se deixe enredar na repetição, ora procurando criar momentos de balanceamento rítmico mais climáticos e harmónicos, ora não se eximindo de procurar movimentos mais enérgicos, com baixo e bateria galopando enquanto os teclados, samples e ocasionais elementos vocais criam ambientes exóticos.

Durante o ensaio, por vezes, ainda se nota alguma hesitação. É natural. Todos sabem o que fazer, mas os tempos de entrada nem sempre se revelam correctos e os olhares trocam-se em alturas de dúvida. Há afinações ainda a realizar, mas eles sabem que na hora da verdade nada falhará. As canções também ainda não têm nome oficial, mas todos as conhcem pela designação de código.  

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A mesa de mistura e o gira-discos de Cruzfader. Guilherme Marques

“Vamos tocar agora o Feeling ou a Van Damme?”, interroga Fred, rindo-se. “Essa canção ganhou esse nome porque uma vez o Sam estava a tentar explicar o ambiente que estava a imaginar para ela e começou a falar de uma cena de um filme do Van Damme para esclarecer o que queria e essa imagem ficou”, diz.

Às vezes é assim. Existe uma história à volta da canção. Outras vezes é um som ou uma voz. No caso do tema que vai abrir o concerto de sábado o elemento distintivo pressente-se logo na introdução, ouvindo-se um discurso na voz de uma mulher. Quando Sam revela a quem pertence todos ficam surpresos.

O concerto vai abrir com a voz de Maria Lurdes Modesto, figura da gastronomia e da TV portuguesa, que apresentou um dos mais populares programas culinários de que há memória nas décadas de 1960 e 1970. “Retirei esse pequeno excerto vocal de um disco antigo dos anos 1970”, revela ele, enquanto se ouve uma voz a dissertar sobre o Natal, os doces, as receitas, a vida. Por norma a maior parte dos temas do grupo começa assim, com um motivo vocal ou instrumental, repescado de um qualquer registo antigo. É a partir desse elemento que a sua música se vai desenhando.

Sam é o homem que contribui com mais fragmentos sonoros, mas todos fazem o trabalho de casa, repescando fontes que possam vir a ser utilizadas. “É uma questão de eficácia”, resume Sam. “Poupa-se tempo se houver trabalho de casa. É diferente partirmos para a criação de uma canção a partir de um sample ou se fizermos uma sessão de improviso com baixo ou piano. Já aconteceu, mas por norma os temas começam à volta de um fragmento. E neste álbum todos contribuímos para essa recolha.”

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O baterista Fred Ferreira. Guilherme Marques

O primeiro álbum do grupo foi lançado em 2010, no seguimento de um concerto no MusicBox em Lisboa. Em 2012 editaram o segundo, também ele homónimo, depois de um concerto no CCB.

Desta feita a estratégia repete-se. “A diferença é que há três anos tínhamos lançado um single previamente para anteciparmos o concerto”, recorda Francisco, “e tínhamos o disco praticamente concluído, tendo feito depois acrescentos e composto duas músicas novas. Agora ainda não existe single, mas o desafio é o mesmo: oferecer um concerto às pessoas em que elas vão ouvir pela primeira vez um álbum antes mesmo de ter sido editado.”

Para o colectivo a situação é uma forma de fixarem um objectivo e de se responsabilizarem com eles próprios. “Claro que existe um trabalho prévio, já temos o álbum em andamento, mas o concerto funciona como marcador de limites e naquela altura temos que ter repertório novo para proporcionar ao público”, sorri Gomes.

Todos eles têm outras ocupações. Sam e Cruz têm os seus percursos solitários, para além de serem alvo de muitas colaborações. Fred integra a Banda do Mar ou os 5-30, para além de ter estúdio e editora própria, enquanto João e Francisco já se encontraram nos Cool Hipnoise, fazendo hoje parte de várias formações, dos Cais Sodré Funk Connection aos Fogo-Fogo.

As primeiras reuniões para as gravações do novo disco deram-se em Fevereiro do ano passado. Mais tarde, em Agosto, tornaram a encontrar-se nos estúdios da Meifumado em Famalicão e voltaram a gravar. “Registámos 13 temas e aproveitámos metade”, conta Francisco. “Depois pegamos noutro pacote de ideias e fizemos algumas sessões. Acabámos com cerca de 20 canções. Foi aí que escolhemos as melhores definitivamente, deixando de lado as mais parecidas ao que havíamos feito no passado, porque também gostamos de ariscar e nos surpreender.”

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A máquina de Sam The Kid a lançar loops e samplers. Guilherme Marques

No local de ensaio o espaço é diminuto, estão virados uns para os outros para a comunicação ser mais eficaz, apesar das protecções colocadas nos ouvidos devido ao volume do som. O lado cénico ou a forma como se disporão em palco são preocupações que ali não têm lugar. Naquele momento o que conta é ter as canções afinadas sem falhas, até porque as estão a tocar pelas primeiras vezes. Por norma entra em acção um motivo sonoro lançado por Sam ou Cruz, para o tema se desenvolver a partir daí, com ritmo da bateria seco e sincopado e a linha de baixo encorpada a atribuírem calor e envolvência ao edifício sonoro.

No intervalo dos temas que vão desfiando falam entre si. Cada um tem a sua forma muito própria de comunicar, mas no fim todos se entendem. “Tem que haver sempre muito diálogo entre nós, até por causa das diferentes ferramentas que utilizamos, com baixo, bateria e teclas a dialogarem com a MPC do Sam ou o scratch do Cruz”, reflecte João. “A forma como ensaiamos exige muita sinalética”, ri-se Francisco, “até porque a maneira como eu, o João e o Fred pensamos a música acaba por ser diferente do Sam e nesse sentido temos que nos ajustar”, defende.

O desenho das canções está feito. O seu centro nevrálgico está identificado. O que não significa que depois dos concertos de Janeiro não venham a sofrer alterações.  Operam em sentido contrário. O normal é lançar um disco para o mesmo servir de rampa de lançamento aos concertos. Aqui trata-se de tocar todo um álbum pela primeira vez em palco e só depois registá-lo.

“As canções não irão sofrer alterações substanciais depois, mas essa forma de operar permite-nos transformar alguns elementos ou introduzir novos pormenores”, afirma Francisco, realçando no entanto que quando começam a trabalhar numa ideia nem sequer pensam na sua apresentação em palco. “Não compomos em função disso”, expõe. “O que estivemos a ouvir hoje já é um arranjo compactado daquilo que é humanamente possível tocar.”

Existem pormenores registados em estúdio que não passíveis de serem reproduzidos em palco e como o colectivo faz questão de trabalhar tudo no momento, sem recorrer a truques, acaba por encontrar soluções interessantes para o disco. “Hoje já temos noção da identidade do grupo e os recursos que vamos encontrando têm em atenção isso, sem ficarmos presos, porque é importante termos consciência do que estamos a fazer para não nos repetirmos, mas sem recear abordagens novas”, declara Sam.

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João Gomes prepara ao computador mais uma canção do novo álbum. Guilherme Marques

Para além dos dois álbuns já lançados, editaram também duas mixtapes, onde recorreram a cantores convidados. Há ano e meio chegaram a actuar no festival Sudoeste com as participações de Carlão, Regula ou Valete, mas a identidade instrumental – com motivos vocais – vai manter-se no terceiro álbum. “É ponto assente que nos álbuns não há outras participações”, diz Fred.

Alguns dos apontamentos vocais que se ouvem na música do grupo são fragmentos repescados de discos obscuros, alguns pertencentes à memória soul e funk dos anos 1960 ou 1970. Parte da actividade do grupo acaba por ter um efeito didáctico, levando à descoberta da música negra anglo-americana mais embrionária.

Durante anos Portugal pareceu totalmente dominado pela cultura rock. Na actualidade já não é bem assim. A cultura global do hip-hop e R&B e manifestações como o kuduro ou a kizomba vieram alterar o panorama, existindo um entendimento diferente das formas culturais da pop negra. “Em parte isso sucede porque somos hoje uma sociedade mais mestiça e multirracial do que nos anos 1960 e 1970” profere Sam, com razão, dizendo que ele já pode crescer a ouvir a compilação Rapública ou os Cool Hipnoise.

Antes era quase o deserto. Ou o que existia era contingente. “Hoje nas gerações mais novas que ouvem hip-hop existe quem tenha curiosidade para ir mais atrás procurar as raízes dessa música, mas também há quem não o faça”, reflecte João, com Francisco a acrescentar que a internet e a tecnologia em geral produzem um efeito paradoxal, por um lado fazendo acelerar o tempo – hoje tudo parece acessível, pertencente às mais diversas décadas – por outro produzindo uma espécie de diluição da memória, como se presente, passado e futuro se misturassem, indiferentemente.  

No meio, algures, estão os Orelha Negra, recriando a memória, tendo consciência do passado, não apenas para o celebrarem, mas para o transformarem numa excitante aventura no presente.

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