Lista telefónica, para que te quero?

Antes vinham parar à nossa porta, agora só chegam por encomenda. São os livros que não se lêem e parecem, como as castanhas que já nem embalam, chegadas ao Outono da sua existência. Em 2016, só foram distribuídas 6200 listas telefónicas. Antes, eram milhões.

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Estarão as listas telefónicas no Outono da sua existência? DR

Se há coisa que a lista telefónica tem, são números. Mas hoje, os números da lista telefónica são baixos – em 2016 foram entregues 6200 listas em todo o país. Em 2009, os dados mais antigos partilhados com o PÚBLICO pela Anacom, foram impressas 3,2 milhões de listas telefónicas. Nas décadas anteriores, o número seria ainda maior. Passámos de milhões para pouco mais de 6000 em menos de uma década. As listas são sinónimas de calhamaço, fonte habitual de brincadeiras telefónicas, sintomas de abertura capitalista, da evolução tecnológica ou armas. E também de um tempo que parece andar cada vez mais depressa. “Está lá?”

O ano era o de 1882. Portugal ganhava a sua primeira rede telefónica. No campo da ciência, este foi o ano em que Robert Koch identificou a bactéria da tuberculose - e ficou com o nome para sempre associado a um bacilo. Mas foi também aquele em que, através da Edison Gower Bell Telephone Co. of Europe, Portugal se aproximava da modernidade comunicacional. Os primeiros passos tinham sido dados em 1877, ligando pela primeira vez Lisboa a Carcavelos. Mas a rede, rede mesmo, tinha o alucinante número de 41 pessoas ligadas em 1882, em pleno século XIX – a “primeira lista de assinaturas tinha 22 subscritores em Lisboa e 19 no Porto”, recorda Pancracio Celdrán em A História das Coisas.

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Cartaz da Anglo-Portuguese Telephone Company

Poucas décadas depois, nos anos 1930, a publicidade da APT – The Anglo Portuguese Telephone Company, para cujas mãos tinham passado os telefones nacionais, já "procurava convencer” a classe média urbana de que estes aparelhos eram “imprescindíveis" ao quotidiano daqueles dias, como interpreta o historiador Luís Trindade num anúncio que equipara o telefone à lâmpada e à torneira. É essa a mensagem de um cartaz publicitário - a que se segue outro nas páginas de Foi você que pediu uma história da publicidade? -, onde o bocal debita muitos “blá blá blá” e os TLP (a empresa de Telefones de Lisboa e Porto, cuja sigla significou “telefone” durante muitas décadas para os portugueses) reiteram, já da década de 1970, que o telefone “é irritante mas… é também útil e indispensável!” A ideia era disseminá-lo, enchendo assim as páginas da lista telefónica, que desde 1959 eram editadas pela auto-explicativa Publicações de Listas Telefónicas.

No início da década de 1980, esta empresa passaria a chamar-se Páginas Amarelas SA e dividia-se assim, oficialmente, o mundo das listas telefónicas em dois. Uma das suas grandes accionistas foi a Portugal Telecom. As amarelas, para empresas e serviços, publicidade a tudo o que lá quisesse estar, e as brancas, com milhões de nomes, moradas e números de telefone que foram crescendo com a população telefónica. Cada casa tinha pelo menos uma lista, a de particulares, mas normalmente tinha também a colorida, pesquisável "pelos nossos dedos". A mesa do telefone arranjava espaço para as acomodar. Empilhavam-se sob o telefone ou até, mais tarde, sob os teclados dos computadores de secretária, para ganhar espaço ou melhorar o ângulo de quem escrevia.

A consulta da lista telefónica é um gesto – não só o de a carregar, mas também o de a folhear deslizando os dedos por ela abaixo. Esse gesto está a ser substituído pelo swipe dos ecrãs dos telemóveis, outro tipo de deslizar, e pelo digitar das letras da pesquisa. Infelizmente, as listas também podem ser úteis a quem muito sabe sobre violência e sobre os vestígios a ocultar – uma vítima de agressão policial ainda este ano contou ao PÚBLICO como foi agredida com murros na cabeça, no rosto e no peito, mas também como os agressores puseram uma lista telefónica entre eles e o corpo do agredido para não deixar marca. “Por cima da lista telefónica, deram socos e pontapés.”

Eram, também, um ritual. As listas telefónicas eram como o carteiro, tocavam sempre duas vezes, com o senhor das entregas a bater à porta de casa ou a deixá-las no tapete da entrada renovando assim, a cada ano, o rol de pessoas com quem podíamos falar. E às vezes, por bricadeira, ligava-se a estranhos que não queriam mesmo receber mais chamadas nossas. Durante as décadas de 1960, 70, 80 e até 90, partilhavam-se outras listas entre miúdos, que dependiam estritamente da lista telefónica: havia uma infinitude de partidas telefónicas cujas vítimas estavam à distância de um folhear. Ligava-se para os senhores Coelho, encontrados ao acaso na lista, a perguntar qualquer coisa sobre a toca onde viviam ou para os Leão e suas jaulas. O diplomata Francisco Seixas da Costa lembra o particular requinte da identificação de algumas vítimas.

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“Era uma simples chamada para um determinado número, apurado na lista da cidade. Invariavelmente, a nossa fala era a seguinte: ‘É de casa do senhor Zuzarte?’ Respondiam sempre positivamente, quase sempre o próprio, ao que nós acrescentávamos: ‘O senhor Zuzarte não tem vergonha de ser o último nome da lista telefónica?’”, recorda o antigo embaixador na ONU, na UNESCO, no Brasil e ex-secretário de Estado, no seu blogue Duas ou Três Coisas. “E acrescentávamos coisas como: ‘Deve ser muito triste, não é?’ ou ‘Nunca pensou mudar de nome?’ Da surpresa inicial, o Zuzarte começou a ‘passar-se dos carretos’, respondendo com um chorrilho de imprecações furibundas. Às vezes, era a esposa do senhor Zuzarte que vinha à linha e nós adaptávamos a frases criativamente piedosas. Não vou revelar, contudo, a fraseologia adoptada quando a família Zuzarte passou a encarregar a ‘criada’ de atender as chamadas...”

Sazonal como as castanhas

A história actual das listas telefónicas tem menos piada. A empresa das Páginas Amarelas, os classificados com cor dos Simpsons, está a emergir de uma profunda crise e já vai no segundo Processo Especial de Revitalização (PER), embora o seu presidente, António Alegre, tenha garantido em Junho ao Jornal de Negócios que a empresa teve pela primeira vez resultados operacionais positivos no início do ano.

Em 1982, os perspicazes Táxi editavam, como parte do seu álbum Cairo, a canção Páginas Amarelas: “Ninguém diz nada para me aconselhar/ Só me dão livros para consultar/ Páginas amarelas, Páginas amarelas/ Estou mesmo farto, farto delas”. A canção antecipava outras crises dos média – “Não ligues ao que dizem os jornais/ É só problemas e chatices a mais”, apelavam, fartos de “ver tudo à mão/ E não achar a boa solução” em edições esmagadoras como as das listas telefónicas.

Mais de 20 anos depois, elas ainda tentavam quebrar o enfado. Em 2009, era notícia que já podíamos falar com as Páginas Amarelas no Messenger; dois anos depois, o mundo ficava a saber que Cuba passava a permitir anúncios privados nas Páginas Amarelas nacionais, pela primeira vez em meia década após a revolução de Fidel Castro que eliminou a publicidade comercial e a trocou por propaganda política; em 2014, já com uma dívida de mais de 13 milhões, António Alegre e a sua Norshare compravam as Páginas Amarelas portuguesas. “Muita gente acha que o negócio das Páginas Amarelas está obsoleto, está ultrapassado”, admitia Alegre na altura, quando ele próprio tinha 27 anos e sabia bem como os hábitos se alteravam – no fundo, descobria-se tudo na Internet, onde o seu site pai.pt quer ser hoje “a melhor oferta comercial de marketing digital em Portugal”, como disse ao Negócios em Junho, já do alto de 12 milhões de euros de volume de negócio. Dona de um dos slogans de maior impacto em Portugal – “Páginas Amarelas, vá pelos seus dedos”, que evoca o logótipo dos "Walking Fingers" criado nos EUA na década de 1960 –, a empresa chegou a ter uma facturação de cerca de 100 milhões de euros.

A distribuição das páginas brancas, o nome técnico da lista telefónica convencional, já não é um acto espontâneo sazonal mas sim algo que depende de uma encomenda dos interessados. É uma mudança de abordagem radical, como aquela que agora preside às igualmente sazonais castanhas assadas – os carrinhos nas esquinas das cidades portuguesas também já não rasgam páginas de listas telefónicas para construir a espiral de bolinhas quentes. Há cartuchos novos, próprios para poupar o palato à tinta e outros químicos do papel, e em 2007 e 2008 a própria Páginas Amarelas tentou ajudar na transição e ganhar algum dinheiro com isso, criando cartuchos brancos por dentro mas com o exterior igual à algaraviada de nomes, anúncios e imagens das listas.

Estarão as listas telefónicas no Outono da sua existência? O som de 1962 põe a voz de uma profissional na de Maria José Valério, que já se queixava dos calhamaços – "Sou telefonista/ Vá não vejo à lista/ Porque a demora é um horror/ Sou telefonista/ Mas não vejo à lista/ Porque sei o número do amor" – perante a urgência do amor da Menina dos telefones. Aceleremos para 2015, ano a partir do qual, após concurso público, cabe à Meo distribuir as listas telefónicas impressas. Nessa altura, os números já caem a pique – em 2012 foram impressas 1,6 milhões de listas telefónicas, em 2013 1,2 milhões. O número de nomes nas listas também só decresce. Segundo dados da Anacom (a Meo direcciona os pedidos de informação para a Autoridade Nacional de Comunicações), eram 1,4 milhões de assinantes em 2013, menos 24% do que os 1,8 milhões de 2012. Como por lei a Meo só pode divulgar os números de quem tenha autorizado, há sobretudo empresas nas listas actuais, como notava a TSF no final do ano passado.

A diferença desses anos para 2015/16 é abissal. “Em 2015 e 2016 o número de listas telefónicas impressas solicitadas foi de cerca de 6800 e 6750, respectivamente”, responde a Anacom ao PÚBLICO. No ano passado, foram entregues 6200 listas. Os dados relativos a este ano ainda não estão disponíveis porque a Meo pode entregar as listas solicitadas “até meados de Setembro de 2017”, diz o regulador.

Actualmente, o papel usado nas listas é reciclado e certificado e as tintas e colas não são tóxicas. O esquema das listas também se complexificou. Quem as solicitar via Internet ou telefone recebe o volume da sua área de residência de forma gratuita, mas se desejar outras terá de ir buscá-las a uma loja em Lisboa ou no Porto, ou então pagar para as receber por correio.

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A primeira lista telefónica do mundo data de Fevereiro de 1878 e foi publicada em New Haven, no estado norte-americano do Connecticut. Era um pedaço de cartão com cerca de 50 números, sobretudo de negócios locais, como relata o livro The Phone Book - as primeiras Páginas Amarelas, directório de contactos empresariais, nasceriam entre 1883 e 86, quando um tipógrafo decidiu dar às listas de negócios um papel de outra cor.

A pesquisa do seu autor, Ammon Shea, permitiu-lhe fazer algo que contraria a adivinha que é algo como “Qual é coisa, qual é, que é um livro mas nunca se lê?”. “Passei três ou quatro semanas a ler uma lista telefónica de Nova Iorque de 1980 – da minha infância”, disse à revista Failure. E encontrou, tal como o jornalista Steve Hartman, da CBS, que há duas décadas fez programas em torno das vidas de gente comum que encontrava abrindo a lista telefónica e escolhendo aleatoriamente, muitas histórias. “O grande atractivo da lista telefónica – particularmente das Páginas Amarelas – é que não quer saber de conteúdo emocional, só lista tudo dentro de um certo tempo e lugar. Por isso, é uma ferramenta maravilhosa para desencadear recordações”.

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