O Village Voice vai deixar de ser impresso – e parece ser o fim de qualquer coisa

Fundado por Norman Mailer e casa de três prémios Pulitzer, era o semanário da contracultura, da crítica e, depois, dos classificados, do punk, mas sempre de uma cidade em mudança. Agora, vai viver apenas no digital.

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O tom das últimas capas tem sido a condizer com o estado da actualidade e não tanto com o Verão – a banda-sonora de Trent Reznor ou A Tribe Called Quest para o apocalipse, “como se resolve um problema como Michael Moore?”. E serão, talvez sintomaticamente, mesmo das últimas. Sessenta e dois anos depois da sua fundação, o jornal Village Voice, uma instituição do jornalismo “alternativo” nova-iorquino, da Greenwich Village de Manhattan e de uma certa cultura (ou contracultura) norte-americana, vai deixar de ser publicado em papel. Mais uma mudança nos média, comentada em tom quase fúnebre por jornais e leitores.

Os novos proprietários do título ainda não revelaram quando será publicada a derradeira edição impressa, garantindo que os artigos do jornal de assumida orientação política à esquerda e ainda mais visível enamoramento pela boémia da cidade que o viu nascer continuarão como até aqui no seu site. Um dos fundadores do Village Voice foi o escritor Norman Mailer, e ao seu nome juntaram-se os dos romancistas Henry Miller, Ezra Pound ou James Baldwin e os de jornalistas como Lester Bangs, cronista da cena musical dos anos 1960 e 70, ou da ensaísta e feminista Ellen Willis.

Esse tempo já passou. “Durante mais de 60 anos, o Village Voice desempenhou um grande papel no jornalismo, na política e na cultura americana”, diz o comunicado de Peter Barbey, descendente de uma família de donos de jornais e proprietário do Village Voice desde 2015. “Foi um farol para o progresso e uma voz, literal, para milhares de pessoas cujas identidades, opiniões e ideias de outra forma poderiam não ter sido ouvidas", continua, desdramatizando logo a seguir a decisão agora tomada: “O que dava mais poder ao Voice não era o facto de ser impresso ou de sair todas as semanas”, mas sim o de ter permanecido "vivo" e de ter evoluído “a par e reflectindo os tempos e o mundo em evolução à sua volta”. Agora, defende Barbey em linguagem de negócios, quer que o jornal seja visto como uma “marca”. “Quero que a marca Village Voice represente isso para uma nova geração de pessoas – e para gerações vindouras”.

O factor geração é indissociável do Voice, o semanário repleto de classificados distribuído nas caixas vermelhas que pontuam as ruas de Manhattan ao lado de jornais gratuitos ou pagos – ele próprio se tornou gratuito em 1996. Competia e competiria tanto com a revista Time Out New York quanto com o então emergente site de anúncios Craigslist.

A notícia do “fim de uma era”, como titula a Hollywood Reporter, está a ser recebida e noticiada com um investimento quase biográfico por alguns meios de comunicação. O mesmo entre os leitores nas redes sociais, onde se lamenta, vendo nela um sinal dos tempos, esta espécie de confirmação do que é o século XXI. É que a memória de uma publicação é partilhada pelos seus leitores, como reflecte logo à partida o New York Times sobre o seu vizinho editorial: “Sem ele, e partindo do princípio de que é um nova-iorquino de uma certa idade, é muito provável que não tivesse encontrado o seu primeiro apartamento. Que nunca tivesse descoberto a sua banda punk favorita, que nunca tivesse declamado o seu primeiro jargão literário pós-estruturalista, comprado aquele lamentável sofá futon, descoberto Sam Shepard”, elencam os autores do quase epitáfio.

Marcador de vidas de residentes e visitantes, parte da identidade da cidade, é também uma publicação conhecida pela relevância da crítica que publica, do cinema à música passando pelas artes visuais. Muitos dos seus nomes sonantes, uma lista em que figuraram também Wayne Barrett (jornalista de investigação que foi o primeiro a fazer o perfil crítico de um jovem Donald J. Trump), James Walcott, Allen Ginsberg ou Colson Whitehead, foram saindo ao longo dos anos – alguns não por vontade própria –, à medida que a redacção ia rejuvenescendo.

Com três Prémios Pulitzer, o Village Voice, que viu o seu site ser recentemente redesenhado (um site que em Julho recebeu 1,3 milhões de visitantes únicos, segundo a comScore adiantou à Hollywood Reporter), é visto como “uma bíblia”, como o descreve a BBC. Agora, a "bíblia# passa a existir apenas online, na versão digital de uma relíquia de uma cidade e de um bairro que tomou como seu e que muito mudou. “O negócio mudou-se para o online – e o público do Voice também”, diz Barbey. Podcasts, vídeos e artigos e até “novas formas de publicação impressa” estarão no mesmo lugar, só que mais etéreo, onde Norman Mailer queria “dar um pouco de velocidade à revolução moral e sexual” que se adivinhava em 1955, e de onde o autor de Os Nus e os Mortos e de Um Sonho Americano saiu poucos meses depois, reza a história, por causa de uma gralha num texto impresso.

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