O último sermão de Frankie Teardrop

IT é o adeus musical de Alan Vega, o homem que gritou America, America’s killin’ its youth.

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Vega não se retira sem dizer que nada (para o bem e para o mal) nos condiciona de modo absoluto

Depois das despedidas musicais de David Bowie e Leonard Cohen, no ano passado, eis o adeus de Alan Vega com IT, álbum póstumo que não passa em silêncio. Como noutros discos e noutros tempos, o ex-Suicide deixa-nos com uma crónica do medo, da violência e do terror. A inspiração vem daquele lugar que, em 1970, o levou a juntar-se a Martin Rev, formando os Suicide. O do pesadelo americano, que o cinema e a literatura também souberam enfrentar (de Hubert Selby Jr a Cormac McCarthy, passando por filmes como A Semente do Diabo, de Roman Polanski ou O Cowboy da Meia-Noite, de John Schlesinger).

Gravado entre 2010 e 2016, com a colaboração preciosa de Liz Lamere, a sua esposa, IT é um testamento musical desesperado. Não tem as melodias e o charme pop de Cheree ou de Dream Baby Dream que encantou Bruce Springsteen, os Soft Cell e os notálgicos da doop-wop. Nada do que aqui se escuta promete versões lounge. O Alan Vega de IT é o que canta Frankie Teardrop, aquele que rejeitou o mundo da arte em favor dos concertos no Max’s Kansas City, que sofreu um assalto violento durante um passeio noturno, que sobreviveu a um enfarte. Há um estoicismo nessa obstinação que fulgura em IT, arrancando as canções do ruido. O tema inaugural, DTM (acrónimo para Dead to Me), afunda a elegância minimal dos Suicide num som áspero, denso, lodoso que não mais abandonará o disco. É como se Vega concentrasse em cada faixa a música de alguns dos seus principais pares, evocando-os também (Throbbing Gristle, Cabaret Voltaire, Pop Group, Factrix, Pan Sonic, Whitehouse, Fennesz, Wolf Eyes).

IT não é um disco de homenagens, enlevado em memórias. Vega canta e fala com os dois pés no presente, as suas frases, interjeições ou palavras nascem de experiências de um quotidiano vivido e observado, de que zomba (Today’s tattoos get decorations) ou que fita com corajosa apreensão (Goodbye dreams/life is no joke). Nunca teve ilusões sobre a redenção de Nova Iorque e dos Estados Unidos, mas em IT o sarcasmo tem a companhia de uma inquietação assustada. Sob o silvo de Dukes God Bar, grita “the enemys is at the gates” e em IT (a faixa homónima do álbum) anuncia, sob samples de riffs, a ameaça — “the killer is near, you can smell it/ the weapon is loaded”. Não há espalhafato ou espectáculo, Vega quer apernas descrever, relatar e falar. Este é o seu disco.

Em Screamin Jesus prega contra a guerra (quem o ouve?) — “the red, white and blue is destroyed/there’s no more/ just war, american war” — em Motorcyle Explodes lamenta o desaparecimento da verdade. Sem ceder ao deleite ou à arrogância dos apocalípticos, dá o alarme, toca a rebate, esperneia, grita: “[T]he ghost is dead, the truth is dead/ At rocket speed, subhuman”. A sequência dos temas finais aproxima o disco da obra-prima. Em Pray, envolto numa electrónica pastoral, exorta-nos a uma oração, em busca de alguma paz, para anunciar, em Prophecy, “I will get up/ I will survive (…) “I will go on and on and on/I stand/ It’s my prophecy”. Feita a profecia (que se realizará sempre que obra que nos deixou for ressuscitada), Vega não se retira sem dizer que nada (para o bem e para o mal) nos condiciona de modo absoluto. E proclamará em Stars, a sua canção-testamento: “It’s yours, it’s your life/ it’s your given hand.”

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