O trauma e o teatro vistos por dentro

Em Five Easy Pieces, um grupo de crianças reflecte sobre o caso real do pedófilo belga Marc Dutroux. O teatro documental de Milo Rau chega este fim-de-semana ao Maria Matos, e uma semana depois ao Campo Alegre.

Foto
Este espectáculo é protagonizado por crianças e adolescentes entre os oito e os 13 anos e por um adulto Phile Deprez

Rachel, 8 anos: “Acho que toda a gente merece o seu lugar no palco, porque de outra forma não é justo.” Peter, o único adulto em cena: “Mas o teatro não é justo, é cruel.”

Isto é Milo Rau a olhar-se ao espelho. E é Milo Rau a resumir aquilo que anda a fazer desde 2007, ano em que fundou a companhia de teatro documental e cinema IIPM – International Institute of Political Murder, com a qual tem construído espectáculos no mínimo desconfortáveis, no máximo fracturantes, a partir de acontecimentos e testemunhos reais, semeando vários admiradores e detractores pelo caminho. “Acho que o teatro é algo que acontece através da crueldade do real. Pode mostrar como atravessar essa injustiça e chegar até algo que seja, de alguma forma, mais justo, no sentido de se perceber o que aconteceu e como se pode fazer diferente”, diz ao Ípsilon, numa conversa curtíssima, o encenador, ensaísta e realizador suíço.

Para ele, “isto é o teatro” – e é, sobretudo, Five Easy Pieces, “peça justa onde o justo é muito cruel”, que traz este sábado e domingo ao Teatro Maria Matos, em Lisboa, subindo depois ao Teatro Campo Alegre, Porto, nos dias 22 e 23. Este espectáculo, protagonizado por crianças e adolescentes entre os oito e os 13 anos e por um adulto, é uma exumação do caso do pedófilo e assassino belga Marc Dutroux, que nos anos 90 pôs a Bélgica e outros países da Europa em sobressalto, colados à televisão. Milo Rau também estava lá. “Eu era adolescente na altura. Há uma geração de uma parte da Europa que cresceu com este caso”, conta o encenador. “Lembro-me de que era o início da paranóia pedófila trazida a público e, ao mesmo tempo, o começo de uma certa filosofia anti-elitista. No caso do Dutroux as pessoas viram que havia uma rede infiltrada no governo e corrupção na polícia.”

Há muito que Milo Rau, sociólogo feito encenador, queria pegar nesta “história traumática”. O passo foi dado finalmente a convite do centro de artes belga CAMPO, no âmbito do programa de comissões a artistas para trabalharem com crianças – That Night Follows Day (2007), de Tim Etchells, foi um dos espectáculos que resultaram desta iniciativa (à época intitulada Victoria) e que passou pela Culturgest Lisboa em 2008. Five Easy Pieces, estreado em 2016, foi uma espécie de alinhamento cósmico. “Desde há 15 anos que faço co-produções com teatros belgas mas nunca tinha tido oportunidade nem de trabalhar nesta história nem de trabalhar com crianças. Tudo se uniu”, explica Milo Rau, que irá assumir a direcção do Teatro Nacional de Gent na temporada de 2018/ 2019.

Catarse

Apesar de não ser de fácil digestão, Five Easy Pieces não é das criações mais corrosivas de Milo Rau. Goste-se ou não, é difícil passar ao lado do seu currículo: num dos últimos trabalhos levou a palco The 120 Days of Sodom, inspirado no livro e no filme homónimos de Marquês de Sade e de Pier Paolo Pasolini, respectivamente, e interpretado por actores com síndrome de Down da companhia suíça Teatro Hora, o que levantou poeira na apresentação em Zurique e em alguma imprensa.

Five Easy Pieces também não é o embate político perfurante da peça-julgamento The Moscow Trials (2013), sobre a liberdade da arte (ou a falta dela) no reino de Putin, recusada pelos tribunais da vida real; nem de Hate Radio (2011), um dos vários projectos de Milo Rau desenvolvidos na África Central, este sobre a estação de rádio RTLM, uma ferramenta usada no genocídio do Ruanda – este espectáculo, em que sobreviventes do massacre puseram em cima da mesa os efeitos cumulativos do racismo e do neocolonialismo, passou pelo Maria Matos em 2013.

Five Easy Pieces é sobretudo “uma forma de catarse”, com muito de Antonin Artaud lá dentro, diz Milo Rau. Neste processo, as crianças – que já conheciam bastante bem a história de Marc Dutroux – eram “das poucas pessoas livres do trauma”. “Para elas foi algo que aconteceu há muito tempo. Ao longo da peça vês estas pessoas, connosco, a mostrar o que há por trás do trauma”, refere o encenador, sublinhando que as crianças tiveram acompanhamento de psicólogos. “Elas sabiam muitas coisas sobre o caso. Sabiam detalhes. O que são testes de ADN, o que fazer depois de uma violação… Foi algo inesperado para mim, que sou pai”, confessa Milo Rau.

Foto
Phile Deprez

Este espectáculo conta com o fôlego documental característico do encenador suíço. Houve investigação no terreno, incluindo conversas com o pai de Marc Dutroux (que curiosamente vivia à frente do teatro onde decorriam os ensaios) e alguns familiares das vítimas. Sem ceder à pornografia emocional, a peça é pautada por momentos de intervenção anticolonial – quando Elle Liza dá voz a um discurso de Patrice Lumumba, líder independentista do Congo cujo assassínio foi patrocinado por uma joint-venture entre a Bélgica e os Estados Unidos – e por momentos humorísticos – quando Maurice, o miúdo que nasceu no banho quando o pai estava a comer esparguete, diz ter tossido muito na barriga da mãe. Passado uns minutos, está a tossir no papel de um homem mais velho, o pai de Dutroux. Porque isto também é um espectáculo sobre teatro.

Dividido em cinco lições orientadas por um adulto (Five Easy Pieces é, originalmente, o título dos exercícios de piano de Stravinsky para crianças), o primeiro capítulo é sobre mimetismo, o segundo sobre como construir uma personagem, o terceiro sobre a relação entre o actor e o encenador, o quarto sobre como activar sentimentos de empatia, medo e perda em palco (duas crianças interpretam pais que perderem os filhos), o quinto sobre como se revoltarem contra tudo o que aprenderam previamente.

Milo Rau não esconde que há aqui um jogo de poder e manipulação, que acaba por gerar um confronto com os crimes da narrativa. “Por um lado queres usar a frescura das crianças, por outro lado o teatro – pelo menos a minha forma de o fazer – só resulta quando é muito preciso e quando espelha a história em questão”, diz o autor. “Foi interessante trabalhar com uma série de pequenos anarquistas sobre precisão.” E essa foi a parte “emocionalmente mais complicada”. “Foi a primeira vez que fizeram teatro, tanto o elenco original do espectáculo como o segundo grupo que entretanto formámos” (estão ambos em digressão – os nomes que aqui usamos são do elenco original). Também para Milo Rau foi todo um processo de aprendizagem. “Aprendi muito sobre o que é o teatro, do ponto de vista técnico-filosófico.” Um espectáculo construído por crianças e adultos, para ser visto por ambos, é, segundo o encenador, “a melhor maneira de experimentar o que é possível no teatro”.

No final de Five Easy Pieces há uma conversa sobre como gostariam de morrer, tiros e música de Rihanna. O teatro é cruel, dizia-se no início desta história toda, mas também é uma forma de reflexão para chegar a outros caminhos.

Sugerir correcção
Comentar