O Teatro Praga tem a última palavra

Criando uma língua franca para se relacionar com o texto de Wedekind, o Teatro Praga atira-se a Despertar da Primavera à procura de mais um movimento de libertação. No CCB, o texto do autor alemão não terá a última palavra.

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No lugar onde antes havia umas letras gigantes invertidas que escreviam a palavra OLD, há agora umas letras não menos descomunais e igualmente invertidas que soletram NEW. Despertar da Primavera, espectáculo do Teatro Praga a partir do texto de Frank Wedekind, funciona como “lado B da Terceira Idade”, dinamita com uma explosão cor-de-rosa uma ideia de juventude, tal como antes o fazia tomando a antiguidade e a velhice como pretexto. Esse NEW não é um simples pormenor cénico empurrado para o fundo do palco, nem uma simples piscadela de olho ao seu público, mas o anúncio de que naquele espaço estão a dialogar com o passado e a continuar a problematização daquilo que lhes interessa (com ou sem Wedekind). Assim, a aceitação do desafio do Centro Cultural de Belém para levarem à cena, de 24 a 27 de Fevereiro, o texto do autor alemão não o coloca no centro do espectáculo, não o deifica; procura antes uma forma de tornar as palavras um elemento libertador, negando-lhe qualquer primazia hierárquica.

Num encadeamento antecedido por Terceira Idade, Tropa Fandanga e Zululuzu, Despertar da Primavera reclama-se parte dessa família de espectáculos em que o Teatro Praga lidava com questões de identidade de género, da sexualidade como factor identitário. “Esses espectáculos ainda estão na nossa cabeça”, justifica José Maria Vieira Mendes, “ainda precisamos de resolver algumas coisas e ainda estamos a pensar muito sobre identidade. Mas a certa altura o que começa a interessar-nos é que espectáculo queremos fazer, sabendo que temos esta contingência.” A contingência é o texto de Wedekind, aceite como elemento de partida. Mas que o é da mesma maneira que antes o foram Purcell, Shakespeare ou o teatro de revista.

Esse ponto de partida, que traz do final do século XIX “temas aparentemente operativos na sociedade”, diz André Teodósio, como a sexualidade, a identidade, a violação, o aborto, a morte ou o suicídio, é nivelado com a tradução, a escolha de actores, os figurinos e todos os restantes elementos que lhes permitiram perceber, acrescenta Pedro Zegre Penim, “onde é que o texto podia ser libertador e não uma condicionante ou um fardo que temos de aguentar do princípio ao fim”. Cumprido esse movimento de libertação, os três membros do Teatro Praga afirmam que no palco do CCB não estará o Despertar da Primavera de Wedekind, mas “um Despertar da Primavera”, passado pelos seus olhos, transformado pelos seus corpos e devolvido como outra coisa, traduzido num outro teatro. A começar, precisamente, pela tradução.

Após terminar uma primeira tradução relativamente literal, José Maria percebeu que o Teatro Praga nunca conseguiria dizer o texto tal e qual. “Além disso aborrecia-me”, admite. “Por isso, comecei, por simples diversão, a trocar palavras por outras e seguindo uma coisa que já vinha do Zululuzu ia questionando identidades duais ou estabelecidas socialmente – homem e mulher, homossexual e heteressexual. Se estamos a trabalhar a esse nível, também temos de questionar a identidade da língua. E o que é a língua portuguesa? É o que escreveu o Eça de Queirós ou o que se escreve nos jornais. No entanto, a língua que aprendemos e que ouvimos é constituída por imensos padrões – o padrão do Porto, de Guimarães, de Cascais, do Sul, da escola, do Eça de Queirós, mas também do Camilo Castelo Branco, do Camões, do Gil Vicente, da televisão ou da rua.”

De repente, abrindo portas a uma promiscuidade que tanto acolhe arqueísmos como calão contemporâneo, estrangeirismos como regionalismos, constituem aquilo a que chamam “uma espécie de língua franca do espectáculo”. Uma língua cuja estranheza inicial não tarda em ceder lugar à natural convivência com frases como “As infantas da tua idade já não roupam-se assim”, “Não quedes triste, mater” ou “Nem palpitas o que estava em stake”. “Sabemos que há um padrão comunicativo”, resume Teodósio, “mas prevalecem imensos equívocos nas conversas diárias. Não reconhecemos, portanto, que seja funcional, 100% produtivo ou eficaz. E então criámos um outro. Não por ser contra, mas simplesmente porque não o reconhecemos como sendo único ou melhor.” “Em quase todos os nossos espectáculos há sempre essa ideia de pôr em causa algumas ditaduras invisíveis – e o português também o é”, acrescenta Penim. De qualquer forma, acreditam, “é mais difícil perceber Os Lusíadas do Camões do que isto”.

Perder o controlo

Wendla, Melchior e Moritz têm 14 anos. Estão em plena descoberta da sua sexualidade e os seus percursos, em conflito com a geração que os precede, rodear-se-ão de violação, aborto e suicídio, pistas suficientes para que a peça escrita pelo alemão Frank Wedekind em 1891 acumulasse censuras e acusações de obscenidade. Terá sido essa combinação a motivar o convite do CCB ao Teatro Praga, companhia cujo percurso não-alinhado tem passado por um questionamento persistente das categorias sociais e de todas as formas limitadoras de amestrar a identidade. Não sendo uma companhia de reportório – por muito que se tenham servido de Molière, Shakespeare ou Ésquilo em espectáculos anteriores –, a primeira reacção foi de desconfiança e de procurar perceber que expectativa era depositada nessa proposta.

“Normalmente, convidam o Teatro Praga e estão à espera que sabotemos a expectativa”, diz Penim. “Já não é uma expectativa muito tradicional.” Uma vez que cada nova criação é também um teste às próprias fundações do colectivo, descartam qualquer “posição moral sobre o que é a idade, o novo ou o velho” ou qualquer choque geracional batido e rebatido, preferindo deslocar a sua abordagem para questões como as lavender linguistics (uma gíria falada por comunidades LGBT) ou o capitalismo rosa (uma corrente que defende uma economia de mercado específica das mesmas comunidades).

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Além do texto pré-estabelecido, que podia apressar a fixação do espectáculo, Pedro Penim afirma que entregar o palco sobretudo a pessoas que nunca antes tinham participado em criações do Teatro Praga funcionou como “mais um mecanismo para perder o controlo do espectáculo”. Com os habituais da companhia a assumir os papéis de adultos (“personagens que são ridicularizadas ou ridículas”), os restantes papéis foram distribuídos por um conjunto de intérpretes descobertos em audições ou através da passagem pelo espaço Rua das Gaivotas 6 (dirigido pela companhia), eles próprios criadores em nome próprio e que estabelecem um outro diálogo em cena. Numa peça sem necessidade de afirmação e em que dizem estar-se nas tintas, são caras novas que chegam para ajudar os Praga a fazer aquilo que sempre fizeram: procurar formas de serem livres.

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