“O teatro consegue devolver a identidade a quem foge de uma guerra”

Ruínas, o musical de Lynn Nottage que esta quinta-feira se estreia no São Luiz, em Lisboa, parte das histórias reais de refugiadas congolesas.

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Lynn Nottage escreveu o seu musical sobre um bordel de fronteira a partir de histórias de refugiadas congolesas que entrevistou no Uganda NUNO FERREIRA SANTOS

A dramaturga Lynn Nottage quis “alertar para um drama que não estava a receber a atenção devida” e assim nasceu a peça Ruined, baseada em testemunhos de refugiadas da República Democrática do Congo violadas por militares e rebeldes. António Pires apaixonou-se pelo texto quando o leu, em 2010 ou 2011. Aconteceu só agora conseguir encená-lo (a estreia é esta quinta-feira no São Luiz, em Lisboa) e, “de repente, a peça tem uma actualidade extrema”.

Tudo se passa no bordel gerido pela Mamã Nani (Zia Soares), que acolhe mulheres recusadas pelas suas comunidades e não fecha a porta a combatentes de nenhum dos lados. Salima (Elizabeh Pinard) recorda o momento em que foi raptada, tinha o marido ido comprar a panela nova que ela tanto pedira. “Finalmente, naquele dia, o diabo do homem havia de ir comprá-la. Uma panela nova.”

Nottage estava obcecada com a guerra do Congo e com a falta de informação sobre as mulheres que a viviam. “Havia notícias, poucas, e eram mais estatísticas, não havia testemunhos”, diz ao PÚBLICO, numa conversa por Skype. “Na altura, queria adaptar o texto Mãe Coragem, de [Bertolt] Brecht, falei com a [encenadora] Kate Whoriskey e perguntei-lhe se queria ir comigo ao Congo”, recorda.

Whoriskey aceitou o desafio e encenou a versão que se estreou no início de 2009, em Nova Iorque. O sucesso foi tanto que se adiou nove vezes o fim da carreira e o texto ganhou o Pulitzer de Dramaturgia no mesmo ano.

A viagem aconteceu em 2004. “Fomos para o Uganda, mas era muito difícil passar a fronteira e decidimos entrevistar congolesas que estavam em fuga da guerra. No início, pensámos que só uma ou duas iam querer falar. Mas muitas sentiam necessidade de contar o que lhes tinha acontecido e todas, de todas as idades, tinham sido violadas”, diz Nottage.

Brecht ficou pelo caminho. “Quis abordar o tema do ponto de vista do género, dar-lhe uma voz de mulher”, explica a autora.

Ruined, Ruínas na adaptação portuguesa, é um musical. “A música é muito importante no Congo, é o que une as pessoas”, diz Nottage. Ao mesmo tempo, “pode ser uma forma escondida de passar mensagens fortes”. O mesmo acontece com o riso, e há muito humor aqui. “Muitas vezes, depois de uma gargalhada, as pessoas param para pensar”, afirma. “Eu tinha uma urgência e o humor ajuda a mostrar a humanidade. Normalmente, pensa-se que a guerra é guerra, guerra e guerra, mas as pessoas continuam a viver, e também riem.”

Pires viveu uma guerra e esse foi um dos motivos para trabalhar este texto. “Saí de Angola com a minha família quando já tinha começado a guerra civil. Tinha oito anos, mas lembro-me de algumas coisas”, diz. “E sei que muitas pessoas em Portugal passaram pelo mesmo.” Daí a decisão de fazer música original – composta por Filipe Raposo e com letras de Kalaf – e de “limpar a peça de algumas referências muito específicas àquele conflito”. Por um lado, Pires quis dar “um tom lusófono” à peça e, assim, “aproximar as pessoas das histórias”. Por outro, quis “que esta pudesse ser uma guerra qualquer”. Os conflitos “têm particularidades, mas o horror e o disparate são sempre os mesmos”.

Para escolher o elenco, chamou o Teatro Griot, que nasceu para incentivar africanos e afro-descendentes a contarem as suas histórias. Precisava de actores negros e já tinha trabalhado com eles no Teatro do Bairro, onde é um dos responsáveis. “Para o coro fiz um casting e apareceu imensa gente. Nem tinha como lhes pagar ordenados a tempo inteiro”, conta. “Mas todos quiseram ficar, sinto que toda a gente sabe que está a fazer alguma coisa especial.”

 

Iniciar outra conversa

Ruínas estreia-se em Lisboa quando o mundo enfrenta a maior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial e a Europa tenta fazer frente ao milhão de pessoas que aqui chegaram em 2015, a maioria sírios. “As pessoas falam muito, mas as conversas são sobre os passaportes, os números, por onde vêm, se têm roupa”, diz o encenador. “O que a peça faz é dar caras a estas pessoas, devolver identidade a quem fugiu da guerra.”

Por tudo isto, a peça teve de ser mais do que uma peça. Há uma exposição entre o Teatro do Bairro e o São Luiz com os retratos de seis das entrevistadas por Nottage, fotografadas pelo seu marido, o documentarista e fotógrafo Tony Gerber. E quinta-feira, a partir das 18h30, há um debate no Teatro do Bairro que junta Gerber, a eurodeputada Ana Gomes, a historiadora Irene Pimentel, o psiquiatra João Redondo e membros de associações que trabalham com refugiados. Às 21h começa a peça, que Pires acredita poder “contribuir para iniciar outra conversa, levar as pessoas a questionarem as suas perspectivas”.

Nottage alcançou mais do que esperava. “Fomos à ONU testemunhar numa comissão sobre a violência contra as mulheres no Congo e no Sudão, depois estivemos com refugiados no Parlamento britânico”, lembra. Antes, a produção conseguiu levar o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, a assistir à peça com 24 membros da organização. “No fim, um funcionário disse-me: ‘sabes, passei anos a ver esta violência todos os dias e hoje foi a primeira vez que chorei’. Ele tinha erguido uma capa para aguentar mas finalmente estava a sentir. E eu só pensava: ‘consegui’”.

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