O sublime em violoncelo: de Schubert a Tinoco

Duas experiências estéticas de altíssimo nível, tendo como traço de união a proeminência do violoncelo.

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Luís Tinoco escreveu uma peça que que honra desafiadoramente a tradição NFS - NUNO FERREIRA SANTOS

O passado fim-de-semana ofereceu, na área metropolitana de Lisboa, duas experiências estéticas de altíssimo nível, tendo como traço de união a proeminência do violoncelo. No sábado tivemos no Casino Estoril a primeira parte das Schubertíadas organizadas pela Fundação D. Luís, em colaboração com a Sociedade Estoril-Sol, sob proposta do Moscow Piano Quartet (formação residente em Cascais). O quarteto foi reforçado com dois convidados de peso: o violinista Nicolas Dautricourt e o violoncelista Ivan Monighetti.

Se Dautricourt pôde evidenciar o seu panache na Fantasia em dó maior para violino e piano de Schubert, Monighetti foi assombroso na sua Sonata em lá menor para arpeggione e piano: nunca a linha do violoncelo, num fraseado de inexcedível e aveludada fluidez, me tinha soado tão naturalmente impregnada de leveza vocal e pujante simplicidade. Ambos os solistas tiveram no pianista Alexei Eremine um parceiro perfeitamente entrosado, ágil, claro e incisivo. Na segunda parte do concerto, o Quinteto em dó maior para dois violinos, violeta e dois violoncelos de Schubert recebeu uma interpretação de primeiríssima água, só deixando margem para pequena maturação futura no longo andamento inicial: tudo nos restantes foi da ordem da intemporal perfeição.

Perfeita foi também, no dia seguinte, a direcção do maestro Pedro Neves à frente da Orquestra Sinfónica Portuguesa, no Centro Cultural de Belém. Uma pouca frequentada, mas bela Abertura da ópera L'hôtellerie portugaise, de Cherubini, abriu o concerto; a fechar, a conhecida Sinfonia Escocesa de Mendelssohn. Em ambas as obras a orquestra mostrou-se na sua melhor forma. A precisão nas entradas, a justeza dos tempos, o cuidado no esculpir das frases, a inteligente exploração das gradações dinâmicas — tudo contribuiu, sem espalhafato, para valorizar a música e seduzir o ouvinte.

Entre estas duas partituras, escutou-se o novo Concerto para violoncelo e orquestra de Luís Tinoco (estreado no dia anterior em Almada), no qual se destacou o solista Filipe Quaresma. Este tinha já tocado este ano no CCB o Duplo Concerto para violino, violoncelo e orquestra de Brahms, onde, em excelente parceria com Johannes Lorstad e a Orquesta de Extremadura, dirigida por Nuno Côrte-Real, alardeou a sua impressionante técnica, ao serviço de uma rara intensidade expressiva. Mas o violoncelo que nos trouxe o Concerto de Luís Tinoco, apontado para semelhante patamar de virtuosismo, recorre a técnicas de escrita diversas e é, esteticamente, um outro animal, menos ancorado na subjectividade e na exuberância solísticas do que a herança do romantismo nos faz esperar. Aqui, numa das possíveis narrativas, o som do violoncelo começa por se erguer em melancolia sobre uma paisagem desolada, melodicamente inerte, veiculada pela orquestra.

Finos raios de luz vão porém animá-la, e ouve-se um ser em tímida expansão; o violoncelo segue-o, aprende-lhe os contornos, é submergido. Então irrompe a solo, e a orquestra ecoa os seus gestos, a sua vontade, um íntimo que em ondas se sacode, colorando-se de sonoridades variegadas.

Nova transição: então temos a orquestra em modo de terramoto, com suas réplicas ocres e pétreas. Não há lugar para o subjectivo: ainda não temos concerto, mas antes imersão no magma que se revolve. Mas o motivo enérgico, ziguezagueante da terra em convulsão abre a via de um diálogo, e mantém-se como memória no discurso, agora aceite pela orquestra, do violoncelo, que lhe impõe uma harmonia apaziguadora, ciclicamente iterada em tons de azul.

Qualquer que tenha sido o nosso grau de estranheza no desenrolar do Concerto, ficamos no final inteiramente convencidos: Luís Tinoco logrou escrever uma peça que é reconhecivelmente sua, que honra desafiadoramente a tradição e que, na sua coerência e na sua novidade, abre horizontes à imaginação. Filipe Quaresma navegou nesta partitura complexa e sugestiva, rica de combinações tímbricas e texturais, pejada de sobressaltos, como um peixe dentro de água, ora fundindo-se com os naipes de cordas, ora sobressaindo no agudo com total autoridade, a qual lhe valeu, no final, três chamadas ao palco para receber os aplausos.

 

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