O Sopro de Tiago Rodrigues em Avignon num “momento especial”

Tiago Rodrigues estreou esta sexta-feira Sopro no Festival de Avignon. As nove récitas de uma peça em que oferece o palco à ponto Cristina Vidal encontravam-se já esgotadas, sinal de um reconhecimento crescente em França.

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Cristina Vidal nunca deveria ter sido vista num palco. Tem sido esse o seu desígnio, em cada um dos 39 anos que leva de uma carreira em vias de extinção por todo o mundo. No entanto, a ponto do Teatro Nacional Dona Maria II (TNDMII) que sempre prezou a sua invisibilidade no teatro, esteve esta sexta-feira no centro da estreia de Sopro, peça de Tiago Rodrigues em resposta a uma encomenda do Festival de Avignon. E no centro do palco continuará, depois de o impacto imediato (de uma noite que teve na assistência o director do festival Olivier Py, o secretário de Estado da Cultura Miguel Honrado e a ministra da Cultura francesa Françoise Nyssen) se ter prontamente materializado em convites para a peça – co-produzida por várias instituições francesas – prosseguir a sua carreira internacional em vários outros palcos a partir de 2018.

Era já antiga a ideia de Tiago Rodrigues escrever um texto para Cristina Vidal, mas só com a sua nomeação para director do TNDMII ganhou um impulso definitivo, ajudado pelo desafio de Agnès Troly, directora de programação de Avignon, para que o dramaturgo português criasse uma peça original a apresentar este ano no festival. “Vi o seu espectáculo By Heart no Théâtre de la Bastille e no final pensei que tinha de o ver para lhe dizer que estava muito comovida, mas depois percebi que não conseguia falar, tinha vontade de guardar aquilo para mim e de reflectir”, conta Troly ao PÚBLICO. O encontro foi adiado somente até final de 2014, quando viajou para Lisboa a fim de assistir às primeiras apresentações de António e Cleópatra, convidando Tiago a mostrar essa mesma peça na sua primeira presença no festival criado por Jean Vilar em 1947.

António e Cleópatra, texto de Rodrigues a partir de Shakespeare, foi escrito para a dupla de bailarinos e coreógrafos Sofia Dias e Vítor Roriz – presentes também no elenco de Sopro, ao lado de Isabel Abreu, João Pedro Vaz e Beatriz Brás, as vozes e os corpos de que Cristina Vidal se serve para desfiar as suas memórias do teatro. “Com o António e Cleópatra, porque não foi estreado aqui”, reflecte Sofia Dias minutos após a primeira apresentação pública de Sopro, “já tínhamos a percepção do que era contar essa história a uma plateia. Agora, este espectáculo ainda se está a revelar”. Vítor Roriz acrescenta que, desta vez, subiram à cena “com a insegurança de não saber que efeito é que [a peça] tem”. “Mas o fantástico de fazer uma estreia aqui é que este público é bastante diferente de todos os outros, pelo género de avidez e de entusiasmo. É um público vivo e presente que faz questão de exprimir a sua opinião em relação ao que está a ver.”

A forte ovação final a Sopro não escondia esse mesmo entusiasmo por uma peça cuja carreira em Avignon estava já esgotada para qualquer uma das suas nove representações – num espaço com cerca de 500 lugares. Sopro, na verdade, foi pensado precisamente para o espaço do Cloître des Carmes, este claustro cujas ruínas fornecem o cenário que Tiago Rodrigues imaginou como as ruínas de um teatro, delegando em Cristina Vidal a memória desse lugar físico e emocional. Ela, que passou a vida a salvar os actores nas suas falhas de memória, aparece aqui enquanto garante da memória viva de uma sala de teatro, não deixando que público e intérpretes a desbaratem.

Sem arrependimentos

A carreira de Cristina Vidal tem sido dedicada à palavra. Em palco, contrariando o seu habitual lugar de invisibilidade, vemo-la agora soprar o texto aos actores e falar através deles. Terá sido, aliás, o valor da palavra a não lhe permitir retroceder depois de ter aceitado o desafio de Tiago Rodrigues para se mostrar pela primeira vez ao público – Cristina é o único elemento do elenco em cena durante toda a peça. “Aceitei imediatamente, mas mais tarde arrependi-me várias vezes”, confessa. “Só que já tinha dito que sim, e a palavra é para mim a coisa mais importante.” O arrependimento visitou-a várias vezes durante o processo por achar que não conseguiria cumprir com as expectativas do autor e encenador. “Tinha muito medo, até hoje tive muito medo e acho que amanhã vou ter outra vez – talvez menos. Mas depois de ler o produto final, construído ao longo do tempo, realmente pensei que não há razões para ter arrependimentos.”

Tendo partido de histórias recolhidas junto da ponto do TNDMII, mais ou menos ficcionadas, Tiago Rodrigues diz que “a linguagem do espectáculo acabou por ser inventada já durante os ensaios com os actores – o espectáculo é fruto dessa batalha de escrever de manhã, experimentar à tarde, discutir com os actores”. É desse processo que resulta esta linguagem que orbita em torno de Cristina e que, falando de teatro, “fala também da vida, da perda, da esperança, de amor e de política”.

Este é assumidamente um momento feliz no percurso de Tiago Rodrigues. Em Avignon, além da estreia de Sopro, participará em vários debates e no lançamento de um livro de Rui Pina Coelho sobre o teatro português contemporâneo, e terá a sua Tristeza e Alegria na Vida das Girafas encenada por Thomas Quillardet. Esta altura em que acaba de ser nomeado para o Prémio Europeu Theatrical Realities e tem vários textos seus publicados em francês, representa um claro “especial e de atenção”. Também o secretário de Estado Miguel Honrado declara ao Público, referindo-se à estreia de Sopro, estarmos “num momento muito importante, para não dizer histórico – não há muitos casos de peças portuguesas co-produzidas pelo Festival de Avignon”, acrescentando que o novo “modelo de apoio às artes tem na internacionalização um dos seus pilares” e declarando o compromisso do Ministério da Cultura com “um trabalho de internacionalização diferente daquele que tem sido feito nos últimos anos e que valorize cada vez mais a cena portuguesa.”

Apesar deste pico de atenção, Tiago Rodrigues relativiza: “Uma das coisas bonitas no TNDMII é que entro na sala de ensaios e sou um artista a ensaiar uma peça – como era há dez anos”. Muito embora nem todas as peças terminem com a protagonista tomada por “uma sensação estranhíssima”. Cristina Vidal, minutos depois da estreia, sentia-se ainda num lugar desconhecido. E perguntava-se: “Mas isto será mesmo verdade, ou foi só um sonho muito desejado?”

O PÚBLICO viajou a convite do Teatro Nacional Dona Maria II

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