O segundo tiro no porta-aviões

Depois de Auto-Rádio, a magnífica estreia, Benjamim regressa com um disco a meias, em português e inglês. O quê? Tenham calma, faz todo o sentido.

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Sentado num banco à porta de um café em Benfica está um dos mais belos segredos da pop escrita em português, que faz uma confissão: Benjamim anda preocupado com a verdade. Tanto que passados uns dias esta mesma ideia surge nas páginas do Expresso. Ser-se requisitado para várias entrevistas tem os seus inconvenientes e um deles é o da repetição: fulano conversa com um par de jornalistas, abrem-se os jornais e ali estão as mesmas declarações, com ligeiras alterações. Repetir bordões pode ser uma estratégia, como no caso de um Ricardo Araújo Pereira, que prepara meticulosamente cada declaração; ou então sintoma de que há qualquer coisa que não sai da cabeça do entrevistado. É o caso.

“Falar de verdade é sempre danado”, diz, enquanto mexe o corpo à procura de uma posição no banco que diminua o seu desconforto natural. É fim de tarde e ele está de barba por fazer, cabelo despenteado, ar de quem dormiu pouco e foi surpreendido pela agitação do mundo quando preferia estar quieto. Ar de quem tem uma comichão e nunca sabe bem onde coçar. Um ar que nunca o abandona.

“Não estou no negócio da fama”, continua. “Não faço questão de passar ao lado do público, até gostaria de chegar às pessoas. Mas não acordo de manhã a pensar ‘Como é que vou chegar a mais gente?’. Acordo de manhã a pensar como é que acabo uma canção”.

Toda esta reflexão vinha a propósito de uma pergunta inocente: cabe na cabeça de alguém que um músico em ascensão escolha, para segundo álbum a solo, fazer um disco de meras oito canções, bilingue, a meias com outro músico? Vendo as coisas pelo ângulo da mundo da indústria musical a resposta é não. Mas para Benjamim faz.

“Isto foi uma óptima forma de passar ao lado do difícil segundo disco”, responde, meio no gozo meio a sério. Ele sabe como é fácil acertar na água depois de mandar um tiro no porta-aviões à primeira. Mas também não desconhece que não é assim que se planifica uma carreira. Numa carreira, daquelas sérias, os álbuns são todos em nome próprio, de originais, e distam dois ou três anos entre si, sendo editados após digressões preparadas antes mesmo do disco estar gravado. O que ele devia estar a fazer era editar doze temas em nome próprio, pedir o foco dos Coliseus só para si, aparecer na capa da Caras.

E no entanto isto: das oito canções de 1986, quatro dele, quatro de Barnaby Keen, um inglês que nem sequer se pode dizer que seja seu amigo, dessas oito canções há quatro sublimes, inqualificáveis, escritas num estilo único: são as Benjamim.

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Barnaby Keen foi um pedaço do passado de Benjamim que aconteceu regressar quando ele menos esperava — de modo que aproveitou e ajustou contas: 1986, quatro canções dele, quatro de Barnaby vera marmelo

Mas perante uma colheita tão boa torna-se necessário perguntar porquê. Porquê fazer um disco tão pequeno e a meias e em duas línguas? Porque sim: “Gostei de fazer música com ele”, assim, tão inocente quanto isto. Tão inocente quanto isto: “Quero ter uma carreira em que possa gravar os discos que me apetece quando me apetece”.

Tudo o que é possível saber sobre canções

Keen foi um pedaço do passado de Benjamim que aconteceu regressar quando ele menos esperava — de modo que aproveitou e ajustou contas. Há alguns anos Benjamim foi para Inglaterra estudar Engenharia de Som. Quando não está a compor para si ou a tocar para outros, grava e produz: “Ele é um grande produtor”, conta o desaparecido e saudoso e cometa pop João Coração, a quem Benjamim deu a mão na feitura de Muda que Muda. Na altura o rapaz, que na realidade se chama Luís Nunes, dava, nas lides musicais, pelo nome Walter Benjamin e cantava em inglês. “Ele ajudou-me nas minhas canções — ele consegue um balanço difícil entre um bom som e alguma espontaneidade”.

Walter Benjamin foi para Londres à procura de saber tudo o que é possível saber sobre canções: não apenas como as compor, mas também como as gravar e produzir. Quando voltou era Benjamim porque queria cantar em português. Uns anos antes, B Fachada, seu amigo desde os 18 anos, levou-o para o universo da editora Flor Caveira — experiência que conduziu este estrangeirado a uma busca de uma identidade lusa. Como resposta a essa experiência, emigrou. “O teu coração anda em contra-mão”, canta Benjamim neste disco. Possivelmente a frase descreve-o na perfeição: ele não é o homem mais óbvio de ler.

Em Londres Nunes conheceu Barnaby, para quem fez som. “Ele tocava bastante lá em Londres, onde estive entre 2009 e 2013. Falava português com sotaque brasileiro, porque se apaixonou por uma brasileira e foi viver para o Brasil, onde esteve seis meses. Não fala português perfeito, mas se estiver cá duas semanas começa a falar bem. Mas aprende acima de tudo com as canções — ele sabe muito de bossa nova”.

Barnaby mantém várias bandas em Londres, numa delas são três irmãos a tocar, “todos gajos muito talentosos”. Ali por 2013 contactou Benjamim: queria vir a Lisboa passar uns tempos e queria dar um concerto. “Nós, eu e o meu agente, arranjámos-lhe um concerto na Pensão Amor [em Lisboa]”. Nessa altura Benjamim vivia em Alvito, no Alentejo, e convidou-o a ir passar lá uns dias. “Fizemos umas canções juntos, gravámos, gostámos ambos da experiência e ficou a ideia de fazermos um disco a meias, bilingue”.

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Estamos no século XXI, estas coisas fazem-se com ficheiros de som mandados por email, chat, whatsapp, certo? Não: depois dessa visita inicial houve mais duas, e em cada uma gravaram quatro temas no estúdio da Pataca. “Não mandámos nada um ao outro, não queria que fosse uma colaboração de mails. Foi o que surgiu naquelas duas sessões e acabou”.

Isto seria um tiro no pé se as canções não fossem boas, mesmo muito boas. Duas delas destacam-se: a estupenda Terra Firme e a popíssima, popzona, popuzada Madrugada, ambas escritas por Luís já-não-Walter Benjamim Nunes. As quatro pérolas que ele desenterra para 1986 contêm todas as marcas do seu talento: melodias irrepreensíveis cantadas de forma doce, teclados açucarados, um talento abusado em caprichar nos arranjos.

Benjamim é um talento raro. Muda que Muda, o segundo disco de João Coração, será possivelmente a rodela tuga dos últimos anos que melhor abre — e o dedo de Benjamim está por todo o lado. “Ele é muito bom instrumentista, particularmante nos teclados, é muito pop. Trouxe dois ou três teclados para o disco que marcam muito as canções. É muito bom arranjador e traz uma camada para a música que ninguém está à espera. Ele senta-se e consegue ouvir ali coisas que mais ninguém ouve. É imprevisível e sempre muito bom”.

Quando ali por 2008 se deu o boom da música cantada em português Benjamim andava por ali, nos bastidores, discreto. No Giro Flor Caveira (uma espécie de digressão com toda a gente da editora) ele podia ser encontrado ao fundo, nas teclas, ou mais ao fundo, nas cervejas. Era o ateu num mundo de católicos e protestantes, mas encaixou “porque é óptima pessoa, conta Coração. “Ele tem mais culpa que nós: lembro-me de ele me dizer atrapalhado que gostava de uma música da Madonna. Era um guilty pleasure. Para nós são havia pleasure, não havia guilt. Ele é um ateu com culpa”.

É talvez isto que distingue as cantigas de Benjamim: não a culpa mas a sombra de um erro, a ideia de que algures alguém errou. O pecado, a falha pessoal — mas embrulhados num papel doce e imaculado. E é talvez a isto que ele chama “verdade”. Como raio se define verdade? Como raio se sabe que um músico está a ser falso?

“Como é que noto que não há verdade num músico?”, pergunta-se ele a si mesmo a dada altura. “Desde tiques a cantar, a oportunismos vários”, começa, mas depois desiste. Para continuar teria de especificar e isso obrigá-lo-ia a ter de deitar abaixo colegas e esse não é o seu campeonato: no intervalo de tempo que passámos juntos elogiu imensa gente, de Luís Severo a Salvador Sobral passando pelos Deolinda, discutiu Dylan, falou do seu assombro com Arthur Russell e quando demos por ela estava a ligar Bach ao jazz. Enfim: ponham-no a falar sobre música e ele, que até é tímido, não se cala.

“Não vivo dos meus discos, vivo dos meus discos, de tocar para outros, de gravar os discos de outros, de produzir e isto faz com que não precise de estar sempre em manobras de auto-promoção. A minha cena não é isso. Eu quero é tocar e estar em cima do palco e ser instrumentista, engenheiro de som e produtor permite-me que haja verdade na minha música”.

Verdade na música pode ser tão simples quanto isto: “Sou um gajo bastante auto-crítico: não me sinto à vontade para estar em palco e estar chateado com a minha vida e ter de disfarçar e gritar “Tudo nice Lisboa?”. Não consigo, fico fisicamente mal-disposto”. Ou gravar um disco a meias com um tipo que mal conhece porque gramou do gajo.

Mas talvez nada disto seja tolo. Talvez isto seja uma forma de encetar um percurso com a inocência de uma criança, uma forma de aprender. “Não estás bem a ver o que é fazer um disco de canções a meias. É uma grande aventura, uma grande aprendizagem”, diz a dada altura. “Não chegas ao outro gajo e dizes que isto vai ser assim. As canções dão muitas voltas. O que eu gosto não é o que ele gosta. Quando lhe mostrava uma coisa e ele não apreciava eu tinha de perceber porquê. Isto ajuda a pôr as coisas em causa. E eu gosto disso, gosto de me pôr em causa”.

Aparentemente resulta: quando voltou de Inglaterra desistira de cantar em inglês e queria experimentar uma identidade lusa: mudou o nome para Benjamim e começou a cantar em português. Exilado em Alvito, no Alentejo, escreveu Auto-Rádio, admirável álbum de estreia, e atirou-se à estrada: mesmo antes do disco sair já havia dado trinta e três concertos porque, confessa, “queria tocar muito de modo a não ter vergonha quando tivesse de tocar ao vivo depois de o disco sair”.

Auto-Rádio foi bem recebido, teve “certamente mais impacto do que estava à espera”. As críticas foram boas, teve imensos concertos, ganhou público.” Ainda a semana passada fui tocar e as pessoas conheciam as letras — é um número limitado de pessoas, que vai aumentando. Por exemplo, senti que o Terra firme [deste disco] mexeu com as pessoas”.

De certa maneira estava escrito que teria de ser assim: “A minha mãe pôs-me a estudar música aos seis — foi como uma doença. Quando eu era adolescente e tinha uma má nota ou faltava às aulas o castigo do meu pai era proibir-me os instrumentos. E eu rebelava-me e gritava “Eu vou ser músico, não me tiras os instrumentos”. O mau pai lá me tentatava convencer que eu podia ser músico ao fim-de-semana”.

Benjamim tornou-se de facto músico e dos bons, dos muitos bons. O português já lhe vem”mais depressa à cabeça”. Mas ele continua a ser o miúdo teimoso que faz as coisas à sua maneira. “Uma das coisas que aprendi com o Dylan”, diz, e é a enésima vez que o ouvimos citar Dylan, “é que não tens de ser virtuoso de coisa alguma. Ele está preocupado em fazer a sua cena, só isso. O que tens de fazer é descobrir a tua maneira de falar, descobrir as tuas limitações — até para as poderes usar a teu favor”.

Agora ouçam com atenção o que ele canta na extraordinária Terra firme: “Homem ao mar (.) tu só queres chegar a algum lado”. Benjamim anda a fazer as coisas à sua maneira, criou uma pop que é dele e nós estamos aqui para aceitar o que ele nos dá. Conta que ainda não fez O disco de canções, sabem, aquele disco que se põe a tocar e nunca se pára. Mas podemos perdoar-lhe a demora, porque “o teu coração caminha em contra-mão”.

Os caminhos de Benjamim são misteriosos, é difícil perceber o que o move ou como se move, mas quando as suas dúvidas se colocam na forma de canção, podemos ter a certeza que estamos em terra firme, porto seguro.

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