O sangue do passado corre nas canções de Maria e Marcel

No final da sua passagem pelo FMM Sines, tornou-se óbvio que Maria Arnal i Marcel Bagés (dupla grafada em catalão) se tornaram um culto instantâneo. 45 Cerebros y 1 Corazón reclama o direito a não esquecer – a música e a História.

Foto

Em Agosto de 2016, foi descoberta em La Pedraja, Burgos, uma vala comum com os corpos de 104 pessoas assassinadas pelas forças franquistas em 1936. No interior, quase intactos, eram encontrados 45 cérebros e um coração, num estado de conservação raro graças à humidade e à acidez do solo, comparável a casos raros como os de faraós do Antigo Egipto. “Isto é muito poético e tem uma potência fortíssima”, comenta com o Ípsilon a cantora catalã Maria Arnal. A notícia deixou uma marca tão impressiva em Maria e no seu companheiro musical, o guitarrista Marcel Bagés, que geraria de imediato uma canção intitulada precisamente 45 cerebros y 1 corazón.

Esta imagem de que, apesar de actos bárbaros, as ideias e a paixão que lhes dá lume resistiam, como se uma dignidade se sobrepusesse a qualquer ignóbil acontecimento, alimentava uma composição que, na verdade, era um símbolo perfeito daquilo que a dupla reclama para a sua criação: um olhar para trás e uma tentativa de compreender e reflectir sobre a memória, segundo um entendimento de que “o passado está sempre em nós”.

Essa perspectiva comum sobre a relação entre música e história estava já viva em ambos quando se cruzaram, através de um amigo realizador, que pedira a Marcel uma música para os créditos finais do seu novo filme. “No dia em que falámos sobre isso”, recorda o guitarrista, “ele vinha com a Maria porque gostava muito que ela cantasse. Propus-lhe fazermos algo com um material que tinha investigado e depois, com isso, montarmos um reportório.” Maria estava então a passar por um momento de aprofundado interesse na escalada da sua árvore genealógica, empurrada pela curiosidade de estudar as raízes sulistas familiares. Mas também musicalmente já tinha mergulhado os ouvidos no passado, desde que descobriu, entre outros, os arquivos de Alan Lomax na internet. “Foi muito iluminador”, conta, “porque até esse momento nem sabia que existia esta figura do musicólogo que vai gravar as pessoas tal como cantam. Encontrei o arquivo na internet e, em particular, as gravações que ele fez quando esteve em Espanha.”

As gravações de campo de Lomax justapunham-se na perfeição à inquietação sobre a sua própria história, documentando as regiões que Maria Arnal identificara como locais de origem dos seus ascendentes e que, de súbito, a colocavam diante da música que os seus avós poderiam ter escutado e de que poderiam ser próximos. Foi também a partir de registos como esses que diz ter modelado o seu canto, escutando, repetindo, emulando, repetindo outra vez ainda até ganhar os jeitos daquelas gentes de outrora – “como se faz na música tradicional e no flamenco”, compara.

O que se tornou claríssimo desde o primeiro momento do encontro entre os dois era que esta vontade de trabalhar a partir de arquivos e de um levantamento de temas do cancioneiro espanhol não podia ficar refém de “preconceitos sobre como as canções deveriam soar”. “Por isso é que nos é tão fácil usá-las e transformá-las”, dizem. Daí que as recolhas tanto possam produzir uma letra a que Maria acrescenta algumas palavras e para as quais Marcel cria a música, como uma sequência harmónica sobre a qual a cantora vai desvelando melodias por si imaginadas.

Partindo de um material que, por qualquer razão, lhes falava e agitava as emoções, foram percebendo o quanto havia de simbólico e belo na ideia de tomar em mãos temas muitas vezes de autoria colectiva e somarem-se como parte desse grupo, acrescentando mais uma camada e voluntariamente tomando o lugar de uma peça de transmissão – e da necessária transformação que sempre acontece nessa cadeia.

“É curioso”, reflecte Maria, “porque sobretudo no início, quando dizíamos que trabalhávamos com gravações de campo, havia muito a ideia de que o passado era algo muito nostálgico, rural, idílico e romântico que tinha de se preservar. Recusamos esta visão porque tende a fechar a realidade e esse passado num museu, em algo que não podemos tocar. Interessa-nos mais pensar estas canções como barro que podemos moldar, que nos pode ser útil, que pode ser muitas coisas e não ter uma forma definida.” Canções que podendo ser de ontem, podem ser reclamadas para o presente sem estarem obrigadas a uma visitação passadista.

Olhar o passado de frente

Toda a ideia de trazer o passado para o presente, não o deixando acumular pó e só ser mexido com luvas, acarreta uma dimensão política que Maria e Marcel não escondem. Quando 45 Cerebros y 1 Corazón é elevado a título do seu primeiro álbum, é também da memória do franquismo e da Guerra Civil que falam. “O franquismo, que não vivemos na primeira pessoa, está também em nós – na nossa maneira de entender a sociedade, de nos relacionarmos com os outros, nos tabus que tudo isso implica”, diz o guitarrista. “Não estamos por isso a olhar para o passado, porque o passado existe em nós.” E acrescenta a cantora que esta música cumpre também a função de “enfrentar um passado de terror, muito recente, e poder olhá-lo de frente”.

Daí também a importância da temática das exumações a que o tema-título alude, realizadas por voluntários dada a escassez de investimento oficial neste remexer do passado próximo, o que faz com que, atira Maria Arnal, “ainda hoje não se saiba onde está [Federico García] Lorca, poeta mundialmente reconhecido e de quem se tem feito um montão de retrospectivas, mas que continua enterrado numa vala qualquer [para onde terá sido atirado depois de assassinado em 1936, a mando do regime]”. E acrescenta que “sete dos ministros de Franco na ditadura faziam parte do ‘partido democrático’ Alianza Popular, de onde saiu o Partido Popular que hoje governa Espanha – há ainda muitos vínculos do que foi a ditadura ao nível do poder político e económico”.

Tudo isto corre constantemente em fundo no magnífico conjunto de canções de 45 Cerebros y 1 Corazón que o duo apresentou num concerto de assombro há uma semana no Festival Músicas do Mundo, em Sines. Música que cruza a riqueza da folk espanhola com os melismas típicos do flamenco, num caminho paralelo àquele que conhecemos de Sílvia Pérez Cruz e Rosalía, mas que aqui vive de uma experimentação em que guitarra e voz tentam, a cada segundo, puxar o outro para um lugar desconhecido. E é nesse ponto que Canción total, Tú que vienes a rondarme, Desmemoria ou La gent revelam todo um imenso charme, cantado hoje com o peso de décadas em cima.

Sugerir correcção
Comentar