O resíduo a que chamamos arte

Ensaios Escolhidos é a mais extensa antologia de textos de George Orwell até agora publicada em Portugal.

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São 37 ensaios e/ou artigos, ordenados cronologicamente e dispensando praticamente notas ou qualquer outro comentário

A recepção de George Orwell (pseudónimo de Eric Blair, 1903-1950) em Portugal foi invulgarmente temporã e logo em 1946 – no ano seguinte ao da edição original inglesa, portanto – foi publicada uma primeira tradução de Animal Farm, sob o título O Porco Triunfante (traduções posteriores adoptaram o título O Triunfo dos Porcos, que teve grande popularidade, e, finalmente, A Quinta dos Animais). Em 1955 a histórica Ulisseia publicou a primeira tradução de 1984/Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (a edição original é de 1949), significativamente prefaciada por Álvaro Ribeiro, um intelectual ligado à “filosofia portuguesa”. Uma tal precocidade na divulgação dos romances mais populares do escritor inglês fica a dever-se, sem dúvida, às urgências e às conveniências da luta política, e sobretudo ideológica, do momento. Tal como aconteceria mais tarde, no pós-25 de Abril de 1974, nos anos iniciais da Guerra Fria, os grandes panfletos orwellianos contra o totalitarismo estalinista (o nazismo eclipsara-se, entretanto, de um dia para o outro…) foram lidos exclusivamente em chave anti-soviética e, mais latamente, anticomunista. Idênticas razões explicarão o (merecido) sucesso de sucessivas edições portuguesas de Homenagem à Catalunha – relato da participação do escritor na Guerra Civil Espanhola (1936/39) e denúncia das torpezas e traições soviéticas contra trotskistas e anarquistas catalães. É verdade que o próprio Orwell afirmara em 1946 (num texto célebre incluído na presente antologia e intitulado Porque escrevo) que “fazer da escrita política uma arte” havia sido a sua “maior aspiração, nos últimos dez anos”, mas a redutora hermenêutica da propaganda de ocasião soterrou por muitos anos a maior parte da extensa e variada obra ensaística do autor. Seja ressalvado que, na última década, a Antígona publicou em Portugal duas colectâneas de ensaios do autor e, em 2014, a Dom Quixote editou os Diários de Orwell.

O presente volume de Ensaios Escolhidos pela Relógio D’Água é a mais extensa antologia de textos de George Orwell até agora publicada em Portugal. São 37 ensaios e/ou artigos, ordenados cronologicamente e dispensando praticamente notas ou qualquer outro comentário (exceptuando a data da publicação original). Foram escritos entre 1936 e 1949, sendo os anos de 1945 e 1946 os mais extensamente representados. Há textos com duas ou três páginas e outros que ultrapassam a vintena e que têm sido por vezes publicados autonomamente. É o caso de Recordações da Guerra Civil Espanhola. Retomando, em 1942/3, a memória de acontecimentos que haviam sido decisivos na sua experiência ideológica e política, Orwell continua a tentar demolir o cinismo e a cobardia de muitos dos seus pares: “No que diz respeito às massas, as extraordinárias mudanças de opinião a que assistimos hoje, as emoções que podem ser abertas ou fechadas como quem abre ou fecha uma torneira, são o resultado da hipnose jornalística e radiofónica [recordemos que ainda não havia televisão por cabo nem “redes sociais”]. No caso dos intelectuais, eu diria que essas emoções derivam mais do dinheiro e da segurança física.” E mais adiante: “Para a classe trabalhadora britânica, o massacre dos seus camaradas de Viena, de Berlim, de Madrid ou de qualquer outro lado sempre pareceu menos interessante do que o jogo de futebol do dia anterior. […] Um dado da conquista nazi da França foram as espantosas defecções entre os intelectuais, incluindo alguns dos intelectuais de esquerda. Os intelectuais são as pessoas que mais alto guincham contra o fascismo mas, chegada a hora do aperto, há uma considerável proporção deles que cai no derrotismo. São suficientemente lúcidos para perceberem quando estão em desvantagem, e além disso podem ser subornados". O que não fariam hoje, entretidos a pagar a casa, o carro e as férias...

Orwell exerceu mais do que um ofício, o que, como é sabido, nem sempre o livrou da penúria, sendo a escrita para jornais e outras publicações periódicas aquele que mais o ocupou e que aqui nos interessa. Não há-de surpreender que a resma de ensaios, e outros artigos mais ou menos de circunstância, que perfaz a sua bibliografia activa some centenas de espécimes. Assim sendo, poderá talvez perguntar-se se 37 textos são muitos textos ou são poucos textos. Direi que são os bastantes para confirmar a escrita lúcida e limpa de Orwell, independentemente dos assuntos versados, e que são suficientes para ilustrar a variedade desses mesmos assuntos. Os textos coligidos nesta antologia (alguns dos quais já anteriormente traduzidos para português) poderiam talvez agrupar-se em quatro núcleos temáticos mas não estanques: um de cariz autobiográfico e jornalístico; outro dedicado à literatura e à escrita; um terceiro centrado em assuntos históricos e políticos; e, finalmente, um que pode até parecer inesperadamente fútil e prosaico. Caberão na última categoria os textos dedicados à tão vilipendiada (já Voltaire observara que a Grã-Bretanha tem “cem religiões e um único molho») gastronomia britânica: “É comum ouvir-se, inclusive da boca de ingleses, que a culinária inglesa é a pior do mundo.” No breve e curioso “Em Defesa da Cozinha Inglesa” (1945), a pretexto da conveniência económica de “atrair turistas", Orwell afirma que “os dois piores defeitos da Inglaterra, do ponto de vista de um visitante estrangeiro, são a tristeza dos nossos domingos e a dificuldade de comprar bebidas alcoólicas". Mas eu recomendaria as “11 regras” de Orwell para fazer “Uma Boa Chávena de Chá” – “um dos sustentáculos da civilização neste país".

Entre os textos simultaneamente autobiográficos e de vívida reportagem, os mais impressivos são Matar Um Elefante (1936) e Como Morrem os Pobres (1946). O primeiro, fruto da experiência de cinco anos que Orwell passou no Oriente ao serviço da Polícia Imperial Indiana, que lhe terá permitido observar de perto “o trabalho sujo do império", abre de maneira memorável: “Em Moulmein, na Baixa Birmânia, fui odiado por muita gente – a única vez na vida em que fui suficientemente importante para tal.” O segundo é um relato do ambiente dickensiano de um hospital parisiense onde o autor passou várias semanas internado em 1929. Orwell recorda que, não obstante as pavorosas condições hospitalares, havia “pobres que se faziam passar por doentes porque haviam descoberto que o hospital era um bom sítio para passar o inverno". E conclui que “é muito bom morrer na própria cama, embora melhor ainda seja morrer com as botas calçadas".

Alguns assuntos são abordados repetidamente, por vezes com intervalos de vários anos. Ou por razões conjunturais (Gandhi, por exemplo), ou por obsessões particulares (Swift, Shakespeare, etc.). Em 1949, e a propósito da publicação de uma autobiografia do líder indiano, “impressionante pela vulgaridade de muito do seu conteúdo”, Orwell ironiza sobre os malefícios da virtude em política: “Sem dúvida que o álcool, o tabaco e por aí fora são coisas que um santo deve evitar, mas também a santidade é algo que devemos evitar.” Seis anos antes, escrevera – e refiro-me a  Ghandi num Bairro Aristocrático – um dos textos mais sarcásticos e mais certeiros deste volume, a propósito de uma figura infelizmente perene: a do “intelectual descontente” e (comodamente) avençado. Um texto que é, verdadeiramente, de antologia. Se Política versus Literatura (1946) é uma extensa e brilhante análise de Viagens de Gulliver, a entrevista imaginária com Swift difundida em 1942 pela BBC, é um corrosivo resumo da radical descrença do grande satirista anglo-irlandês na vermicular espécie humana. Orwell bem insiste no progresso havido, na educação, nas maravilhas dos jornais e da rádio, mas Swift responde: “Os vossos antepassados de há duzentos anos estavam atulhados de superstições bárbaras, mas não eram tão crédulos que acreditassem […] nos vossos jornais diários.»

A literatura, a crítica literária e a língua inglesa são objecto de alguns dos mais extensos, argumentados e justamente conhecidos ensaios de Orwell. Já referimos Swift, mas também Shakespeare (ou melhor: o manifesto mas dificilmente compreensível desprezo que lhe vota Tolstoi) é tema de dois textos, separados por meia dúzia de anos. O primeiro (Tolstoi e Shakespeare) é muito breve mas cabe nele a relevação de duas afirmações decisivas: apear o dramaturgo inglês com base nas inverosimilhanças e confusões do “conteúdo” das suas peças é tão impossível “como destruir uma flor pregando-lhe um sermão»; e sobretudo isto: “Todos os textos têm um lado de propaganda; contudo, em qualquer livro ou peça ou poema destinados a permanecer há sempre um resíduo de algo que resiste simplesmente à sua moral ou ao seu sentido – um resíduo a que só podemos chamar arte.” O segundo texto (Lear, Tolstoi e o Bobo), bastante mais extenso, é um ensaio bem argumentado e muito instrutivo sobre as razões invocadas por Tolstoi para sustentar a sua confessada “repulsa” pelo autor de Rei Lear. Escrito em 1940, Dentro da Baleia, outro dos ensaios mais extensos, constitui, a pretexto da publicação de Trópico de Câncer, de Henry Miller, uma descrição assertiva da evolução do último meio século da literatura inglesa (focando em particular a geração de Joyce e Eliot e a geração de Auden e Spender), tanto do ponto de vista formalmente literário quanto, sobretudo, do ponto de vista das condições sociais e políticas da sua produção nesse período. Citem-se ainda o elogio da literatura honestamente mediana em Bons Maus Livros (“Há canções de cabaré que são melhor poesia do que três quartos dos poemas que entram nas antologias.”); uma pertinente defesa da rádio enquanto “meio de popularizar a poesia", em A Poesia e o Microfone (1945), que a dada altura parece estar a referir-se ao audiovisual (português) contemporâneo: “Tal como estão as coisas, e ainda que a BBC mostre algum interesse pela literatura contemporânea, é mais difícil arranjar cinco minutos para a emissão de um poema do que doze horas para a disseminação de propaganda mentirosa, música enlatada, anedotas rançosas, pseudodebates e afins"; e ainda o absolutamente primoroso “Em Defesa do Romance”, um artigo publicado em 1936 mas que poderia ter sido escrito na semana passada, e no qual Orwell atribui o “declínio do prestígio do romance” (quem diria?) ao “asqueroso palavreado promocional dos críticos literários". Nuclear na ensaística de Orwell é o texto intitulado A Política e a Língua Inglesa (1946), no qual, começando por fazer depender a “regeneração política” do uso competente da língua (condição, aliás, também pertinente para o caso actual português), o autor relaciona depois, exemplarmente, ‘forma’ e ‘conteúdo’: “Se o pensamento corrompe a linguagem, também a linguagem pode corromper o pensamento.” Este é um dos textos desta antologia que já anteriormente tinham sido publicados em português. Porém, e tendo em consideração o que vemos, ouvimos e lemos nos meios de comunicação social portugueses (e nos “corredores do poder”, diriam eles…), ninguém o terá lido. É pena.

Sobre alguns daqueles textos mais imediatamente políticos e relacionáveis com as circunstâncias históricas dos anos de 1930 e 1940 dir-se-ia que o famoso e recente "Brexit" veio reactualizá-los. Talvez o mais modelar, sob esse aspecto, seja aquele intitulado, justamente, A Redescoberta da Europa (1942). Tanto mais quanto todo o texto é conduzido pela comparação que Orwell faz entre o optimismo e a candura de autores georgianos como Rupert Brook e Thomas Hardy, Wells ou Kipling e o desencanto ou a indiferença posteriores à Primeira Guerra Mundial e legíveis em Joyce, Eliot, Pound, Lawrence e outros. Seja-me permitida uma citação mais longa: “No fundo do seu coração, Galsworthy [o autor de A Família Forsyte] despreza os estrangeiros, como qualquer homem de negócios iletrado de Manchester. A sensação que temos ao ler Joyce e Eliot, ou mesmo Lawrence, é que eles absorveram intelectualmente toda a história da humanidade e são capazes de ver para lá do seu tempo e lugar, de olhar para a Europa e para o passado; e essa sensação não a encontramos em Galsworthy nem em nenhum dos escritores ingleses característicos do período anterior a 1914. […] Saímos de um remanso e regressámos à história.” E Orwell conclui que aqueles escritores dos anos de 1920 “romperam o círculo cultural dentro do qual a Inglaterra se fechara durante cerca de cem anos. Restabeleceram o contacto com a Europa e trouxeram de volta o sentido da história e a possibilidade da tragédia.” O tema da “excepção” e do “isolamento” britânicos e o da maior ou menor “integração” europeia futura são retomados, por exemplo, num artigo de 1947 intitulado “Rumo à União Europeia”.

Destacarei, finalmente, o ensaio Notas sobre o Nacionalismo e o artigo Confissões de Um Crítico de Livros. O primeiro, absolutamente central no pensamento de Orwell, é um dos mais verrinosos textos deste volume. E um dos melhores. Interrogando-se sobre a razão pela qual nenhum alegado perito, “independentemente das suas orientações políticas”, fora capaz de prever “um acontecimento tão previsível” como o Pacto Germano-Soviético de 1939, Orwell afirma que “os comentadores políticos ou militares, tal como os astrólogos, podem sobreviver a praticamente qualquer erro, porque os seus seguidores mais devotados não recorrem a eles para uma apreciação dos factos", mas para uma confirmação dos seus preconceitos. Não nos têm brindado os anos mais recentes com uma caterva de “peritos” e “comentadores” económico-financeiros deste tipo? E dizendo adiante que a mutabilidade de opinião e a indiferença à realidade caracterizam o “pensamento nacionalista” (não identificável ao patriotismo), Orwell lembra que “não há praticamente atrocidade – tortura, tomada de reféns, trabalhos forçados, deportações em massa, detenção sem julgamento, falsificação, assassinato, bombardeamento de civis – cujas cores morais não se alterem quando são cometidas pelos “nossos”.” É assim que, “durante seis longos anos, os admiradores ingleses de Hitler conseguiram não se inteirar da existência de Dachau e Buchenwald. E muitos dos que denunciam ruidosamente os campos de concentração alemães ignoram, ou só vagamente reconhecem, que também na Rússia existem campos de concentração.” Recordo que este ensaio foi escrito e publicado em 1945. Do ano seguinte são as demolidoras Confissões de Um Crítico de Livros, relato supremamente hilariante das misérias de um ofício que parece não ter grandezas.

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