Dirty Projectors: o que tem um coração partido?

Dirty Projectors é um álbum de separação, é David Longstreth a vincar uma marca autoral enquanto se expõe sem restrições. Grande, grande disco.

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Catarse completa: David Longstreth pensa tão bem quanto sofre Jason Frank Rothenberg

Sabemos ao que vamos quando os primeiros versos do disco cantam assim: “I don’t know why you abandoned me / You were my soul and my partner / What we’ve imagined and what we’ve become / We’ll keep on separated / And you can keep your name”. Sabemos que vamos encontrar um álbum de coração partido, de recriminações e dor de corno, de memórias doces tornadas dolorosas e de recordações que ganham novas leituras agora, agora que o coração que palpitava feliz está triste e encolhido.

Eis-nos, portanto, nesse território muito específico, porventura ainda sem lugar reservado na nomenclatura pop, que é o dos álbuns de separação. Encontramos aí Blood on the Tracks (1975), o álbum do Dylan a quem a máscara caiu depois do divórcio, Here, My Dear (1978), de Marvin Gaye, prenda envenenada dedicada à ex-mulher, ou About Farewell (2013), de Alela Diane, revisita dorida e tocante do fim de uma relação. Junta-se-lhes agora Dirty Projectors, primeiro álbum em cinco anos da banda fundada por Adam Longstreth.

Sabemos ao que vamos quando ouvimos aqueles primeiros versos, quando chega o “our love is on a death spiral” da segunda canção, quando chega a memória feliz do passado (“first time I kissed you, we both felt time stop”), quando os ABBA são convocados, com um pequeno, mas decisivo, twist em relação ao original: “Winner takes nothing”, escreveu Longstreth. Porém, estando na posse de todas estas informações, tendo lido que o álbum é a catarse da separação de Longstreth e da ex-companheira de banda Amber Coffman, não sabemos ao que vamos quando o som se junta à biografia.

A banda nova-iorquina que chamou a atenção de todos há dez anos com Rise Above, quinto capítulo da sua discografia, álbum surpreendente em que os Dirty Projectors recriavam de memória Damaged, disco de 1981 dos Black Flag, construiu-se enquanto híbrido vanguardista, temperando melodias pop com desconstrucção rock, experimentando abstracção electrónica sob pulsares rítmicos da África ocidental, explorando de forma inesperada os contrastes entre a voz de Lonsgtreth e as harmonias criadas por Amber Coffman e Angel Deradoorian.

Dirty Projectors mantém essa capacidade de surpreender, mas é um álbum de uma natureza diferente. É a música de alguém enredado nos seus próprios pensamentos, a responder ao que o coração dita e a que a memória tenta dar sentido. E é o álbum gravado depois de, nos últimos anos, David Longstreth ter colaborado ou produzido Kanye West, Solange, Joanna Newsom ou Bombino.

O r&b da actualidade, esse de produção esquelética e voz filtrada em Auto-Tune, parece ser o subtexto de grande parte do álbum, mas o lado irrequieto e aventureiro de Longstreth impede-o de se fixar num espaço estético definido – essa é, de resto, uma das suas grandes virtudes. É essa qualidade que transforma a transparência emocional que atravessa todo o disco, desarmante no voyeurismo e/ou empatia que provoca (afinal, já todos passámos pelo mesmo, só não tínhamos alguém a cantá-lo), num álbum admirável. Poucos no cenário actual demonstram esta capacidade de ser múltiplo como múltiplo, sem barreiras estéticas, é o universo musical do nosso tempo. Poucos conseguem, como ele, captar o pulsar dos tempos enquanto definem uma marca autoral tão vincada.

Dirty Projectors são torch songs digitais de voz chorando a dor mais difícil de aplacar (Keep your name). É a forma como se coordenam, como se nascidos para conviver harmoniosamente, manchas de sintetizadores com sons de ngoni, o cordofone africano, e percussão latina (Up in Hudson). É o espírito dos imaculados Smokey Robinson e Bill Withers evocados em Little bubble, é a forma como um techno assombrado bombeia ritmo, festa triste arrancada aos subterrâneos da mente, sobre o lamento confessional dessa canção toda ela sombra que é Ascent through clouds.

Nestes temas que parecem desenvolver-se organicamente enquanto Longstreth recorda, desvela, rumina, ouvem-se melodias de oboé casadas com baixo P funk, há berimbau samplado para dar mais ritmo a “tropicalidades” que David Byrne incentivaria sem restrições (Cool your heart), há um Hammond retalhado para nos transportar ao romantismo vintage dos Procol Harum do standard Whiter shade of pale.

I see you, canta David Longstreth, segundos antes de o som ser sugado até ao silêncio, da última canção terminar, do álbum se despedir. Catarse completa. Não sabíamos ao que vínhamos e queremos voltar rapidamente. David Longstreth pensa tão bem quanto sofre.

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