O plano e o acaso

1. O plano era dormir no Porto três noites, de quinta a domingo. Já chovera e o céu ameaçava mais, talvez até ao fim, então botas, gabardine, biquíni. O biquíni é a esperança que ficou na caixa de Pandora, ou só a falta que a água faz. De repente, ao fim de dois meses na minha toca alentejana, vi aquilo que faltava. Lisboa é uma cidade flutuante. Em Jerusalém, o que falta em água sobra em fé, salva que o mar está perto. No Rio de Janeiro, a Lagoa estava a duas paragens de autocarro e na chuva era a Amazónia. Em compensação, no meu Alentejo sem água não há turismo. Difícil ter água e não ter turistas, equação que já nem se põe em Lisboa, cada vez mais bonita para quem vem de fora. Idem para o Porto, pelo menos chegando assim na primeira quinta-feira de Junho, em plena tomada espanhola: dava para ver todo o Primavera Sound e ir derrubar a monarquia.

2. No primeiro concerto do Primavera, bem dia claro, talvez fôssemos mais americanos que ibéricos. Rodrigo Amarante tocou o seu Cavalo tão sorridente como Johnny Guitar, se Johnny Guitar fosse do sertão. Cavalo faz-me pensar num Brasil filmado por Nicholas Ray. Lá para o fim vem, e veio, o meu verso favorito, fera dos palácios, peste dos jardins, que na boca de um carioca acaba járrdjinsshh. Era como espalhar pelo Parque da Cidade o que tenho no ouvido há semanas. O plano do Porto começara em Rodrigo Amarante, e o acaso foi ter encontrado na relva o Luca Argel, poeta da Tijuca que eu não via desde a minha casa no Rio de Janeiro, e agora mora no Porto, aliás ia lançar um livro no sábado.

3. Ainda quinta, já lua alta, Caetano Veloso e o trio eléctrico da Banda Cê soltaram o Abraçaço na encosta do palco principal, álbum de uma solidão colectiva, atravessado por um arrepio (e o lugar mais frio do Rio é o meu quarto). Caetano pós-caracóis, pós-tanga, um senhor de cabelo liso, camisa branca, mas pronto a deitar-se no chão, cantar desde que o samba é samba: Existe alguém aqui / fundo no fundo de você / de mim / que grita para quem quiser ouvir / quando canta assim: / eta / eta, eta, eta! Entrou e saiu amado, uma plateia de barbas e flores como na tropicália, só que já sabendo do que o mundo não foi capaz. Não sei se é a melhor geração de sempre, mas será a mais bonita, e com certeza a primeira em que um rapaz dorme em casa dos pais com a namorada que antes dele tinha uma namorada.

4. Sexta de manhã era o temporal, rajadas, dilúvio. Apanhei o metro, que em Lisboa seria um eléctrico, saí em São Bento, desci a Rua das Flores, agora sem carros, com cafés de degustação e gente nórdica. Agora, quer dizer, desde a última vez que desci a Rua das Flores, ou seja, há anos. Mas, sim, do lado esquerdo de quem desce mantinha-se o alfarrabista do meu plano, como um parêntesis no meio de 2014: silencioso, vazio, numa semiobscuridade em que apenas a primeira sala estava iluminada: nos fundos e escada acima, escada abaixo, luzes apagadas por contenção. Há no Porto antigo algo de lacónico que é a derradeira elegância, no limiar entre a sensatez e o mistério.

5. Os dois livros do meu plano, reservados há um mês, esperavam intactos, capa de couro carmim, estrofes que talvez ninguém tenha folheado desde 1870, tendo em conta que o autor é daqueles com que o tempo foi justo, pouco lido então, agora nada. Mas escada acima, escada abaixo, acesas as luzes à vez, havia muito acaso em pequenas pilhas atadas com cordel, autor ou tema manuscritos num cartão, sem nenhum pó.

6. Desci com uma pilha nova, uns daqui, outros dacolá, até ao balcão. O único cliente era um cavalheiro de sobretudo e gravata, cabeleira para trás como no cinema mudo, que cavaqueava com os dois anfitriões. Ora um dos acasos que eu trazia vinha de folhas soltas, o que levou um dos anfitriões a revelar-se restaurador na hora: pincel e cola branca, cartão para nova lombada, forro de papel vegetal. O cavalheiro seguia o acontecimento com o vagar de quem já fintou a morte. Quer ver uma coisa bonita?, perguntou, abrindo uma pasta de couro de onde tirou a carta de um Wellington que falava em Tomaz de Mello Breyner. Ah, o avô de Sophia?, perguntei. Médico da corte, confirmou ele, e passou a narrar a autópsia de D. Carlos depois do regicídio. Sob as mãos tinha uma pilha de livros, depreendi que de uma vasta biblioteca, porque me disse que já não comprava nada, apenas vendia quando precisava de dinheiro, e disse-o tão naturalmente como os anfitriões haviam dito que a luz apagada era por causa da crise. Estava com 85 anos, já ia a prole em não sei quantos bisnetos, só faltava algum interessado em livros.

7. Subi pela Rua dos Caldeireiros. Paredes grossas de granito, janelas de guilhotina, a Adega Vila Meã, só razões para morar no Porto. A construção é sólida, come-se bem, é mais barato. Os estrangeiros devem concordar, porque só me cruzei com estrangeiros até aos Clérigos.

8. Luca, o amigo carioca, mandara uma mensagem com as coordenadas do lançamento. Então, sábado à noite, deixei o Parque da Cidade de fitas atadas no pulso como uma presidiária e atravessei a cidade até à Rua do Rosário, onde estaria um tal Gato Vadio. Estava mesmo, e com muitos livros de Alberto Pimenta logo à entrada. Pimenta, fanzines, combate, uma parede de belas ondas vermelhas, um frasco de belas bolachas de chocolate, q.b. de mesas e sofás, ao fundo um jardim, e entre o jardim e as bolachas um rapaz de barba que por acaso entrara porque era amigo da casa, por acaso encontrara Luca que por acaso já conhecia, por acaso ficara para o lançamento, por acaso era agricultor biológico, por acaso já ouvira falar no meu amigo agricultor do Alentejo, de onde eu saíra para por acaso encontrar Luca no concerto do Rodrigo Amarante, que por acaso era o que se ouvia agora no Gato Vadio. Há um biofísico, Stefan Klein, que escreveu um livro sobre o acaso, disse-me este rapaz. De resto, falámos sobre a proximidade entre quem planta e quem come, o cheiro da terra quando não se vive num apartamento, e calámo-nos para ouvir Luca.

9. Ele sentou-se com uma guitarra eléctrica, computador à mão, um link da Net projectado na parede, olivrodereclamacoes.tumblr.com: cada filme um poema, cada poema uma canção. Então Luca cantava o que tinha escrito e na parede apareciam os filmes feitos para cada texto (uns dele, outros de uma estudante de cinema galega, que também mora no Porto). Eu nunca tinha visto um lançamento em forma de cinema cantado, concerto filmado, livro de música. Seja como for, é para circular pelos becos. Venham daí, gatos vadios.

10. Luca é ainda aquele cara de espessa barba ruiva ao centro da roda de samba acabada de nascer na cave do Café Ceuta. Num dos intervalos, contou-me que caminha no Porto como em cidade pequena, sem quase tomar transporte. Mas tem 26 anos, boa idade para derrubar a monarquia ainda que ela se chame república brasileira, quer dizer, estar lá, no olho do cavalo, no transe da rua. Passava da uma da manhã, noitada de cariocas, baianos, tantos deles músicos, uma aniversariante de samba no pé, dançarinos de forró, curiosos, pára-quedistas, tudo isso entre o palco e as mesas de snooker, que no Rio se chama sinuca. Era como um bairro extra do Rio ali por cima dos Aliados, de segunda para terça. E ainda aqui estou.     

Foto
Paulo Pimenta

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