O Pessoa prosador que o poeta escondeu

A Assírio & Alvim acaba de publicar A Estrada do Esquecimento e Outros Contos, mais um volume de prosas ficcionais de Pessoa organizado por Ana Maria Freitas.

Foto
Estatua de Fernando Pessoa no Chiado, em Lisboa Miguel Manso

“A noite estava ilegível. Não se via céu nem terra – só escuridão.” Com estas frases, que podem trazer à cabeça a “noite antiquíssima e idêntica” de Álvaro de Campos, inicia Fernando Pessoa a notável prosa que abre o volume A Estrada do Esquecimento e Outros Contos, agora lançado pela Assírio & Alvim, no qual Ana Maria Freitas recolhe, edita e comenta vinte e três ficções breves, quase todas inéditas, desse a quem chamaram, talvez com injustiça para o prosador que também foi, o poeta dos heterónimos.

Incluído numa lista de títulos que Pessoa redigiu num caderno de 1914, o ano em que deflagrou o primeiro conflito mundial, A Estrada do Esquecimento é, com Trincheira e O Sargento Falso, um dos três contos deste volume que têm por tema a guerra, um tópico que também o poeta ortónimo evocará no célebre poema O Menino da Sua Mãe. Esta é também a época em que Pessoa, Sá-Carneiro e companhia lançam o Orpheu, ecléctico mostruário de um sensacionismo que Pessoa vinha teorizando desde 1913. E é curioso notar que o narrador de A Estrada do Esquecimento, após sublinhar a ilegibilidade da noite, acrescenta: “Apenas por atalhos das sensações podíamos confiar na existência do céu, em cima, e da terra, em baixo”.

Mas não é apenas pelos seus previsíveis contactos com outras dimensões da obra pessoana que estes contos justificam a nossa atenção. Muitos deles, mesmo na sua condição quase sempre fragmentária, são textos fascinantes. E não deixa de ser um pouco desconcertante, se tivermos em conta as incontáveis reedições e releituras que outras partes da assustadora produção pessoana têm merecido, que este núcleo ficcional tenha tardado tanto a emergir do ainda considerável espólio inédito.

Ana Maria Freitas adianta algumas possíveis explicações para esta relativa desatenção ao Pessoa ficcionista: “Por um lado, há o peso da poesia, e só a mais conhecida chegava para ele ser um autor fabuloso, e depois temos O Livro do Desassossego, um livro sem enredo, sem princípio, meio ou fim, mas que é uma obra fantástica”, diz a pessoana. Por outro lado, acrescenta, “estes textos estavam muito dispersos, era uma confusão de documentos, folhas que pertenciam ao mesmo conto tinham ido parar a envelopes diferentes”. Acresce que se trata quase sempre de prosas das quais só se conhecem versões manuscritas, e só depois de um moroso trabalho de decifração é que é possível avaliar a sua relevância ou determinar se são, de facto, narrativas ficcionais.

E poder-se-ia ainda acrescentar que, sendo o fragmento e o inacabado imagens de marca (talvez involuntárias) de Fernando Pessoa, bem como a sua pulsão para organizar minuciosos planos e esquemas que nunca cumpria, ou a sua tendência para ir atribuindo um mesmo texto ou projecto a sucessivos nomes de autor, quando não a escrevê-lo em várias línguas, todas estas características parecem agudizar-se no ficcionista. Uma das curiosidades deste volume de contos, que a Assírio & Alvim lançará na Casa Fernando Pessoa no próximo dia 9, é que alguns são tão breves que Pessoa, digamos assim, não conseguiu evitar completá-los. Um deles, de um divertido nonsense, chama-se Fábula Imoral e é tão breve que se pode aqui transcrever na íntegra:

“– Sim, disse o homem louro, foi a melhor mulher que conheci.

Calei-me, que era o que estava; há opiniões que são como os presentes que não demos – não podem dar-se (como as mulheres bonitas).

– Era morena? Perguntei enfim, esgotados os efeitos do silêncio, e porque sou psicólogo.

– Não, era minha mulher, respondeu o homem sempre louro.

– Muito obrigado, disse eu.

E continuámos forrados em silêncio, ambos satisfeitos com a vida.

(Esta é uma fábula. O homem louro, porém, levou consigo a moralidade quando se levantou. Quando o encontrar, e ele ainda a ostentar, ditá-la-ei a V. Exas.).”

A divulgação desta faceta de Pessoa, cujas raízes remontam às histórias que escrevia para os jornais que se entretinha a inventar na adolescência, tem interessado vários investigadores, mas é de inteira justiça realçar o trabalho sistemático que Ana Maria Freitas vem desenvolvendo ao longo dos últimos anos. Depois de Quaresma, Decifrador: As Novelas Policiárias (Assírio & Alvim, 2008), que deu a conhecer vários textos até então inéditos de um núcleo da obra pessoana a que o próprio autor conferiu sempre particular importância – e que melhorou ainda significativamente a organização e fixação do que já fora publicado –, a autora publicaria em 2012 o volume O Mendigo e Outros Contos, onde reunia uma primeira escolha de doze contos inéditos.

Na sua aparente diversidade – do protagonista um tanto caeiriano de O Mendigo, que se vê a si próprio como “um atónito”, à mulher que, no surpreendente Maridos, explica ao juiz por que matou o cônjuge –, os contos deste volume anterior talvez formassem, ainda assim, uma unidade mais óbvia. “Quase todos”, observa Ana Maria Freitas, “têm uma qualidade estática”, que a autora relaciona com “essa ideia do drama estático” que Pessoa explorou no texto O Marinheiro, não por acaso publicado no primeiro número de Orpheu. “Não há enredo, não há uma sequência de episódios, não são contos com princípio, meio e fim”, diz. E em muitos deles, como a autora escreve no prefácio a O Mendigo e Outros Contos, Pessoa “dá um tratamento ficcional a questões filosóficas, metafísicas ou científicas”. Vários lidam ainda com “alterações de consciência” e “dimensões alternativas”, tópicos que podem indiciar, admite Ana Maria Freitas, um “diálogo literário” com a ficção do seu amigo Mário de Sá-Carneiro.

Mesmo cabendo latamente no rótulo de “contos intelectuais”, um dos vários títulos genéricos que Pessoa deu às suas ficções nos infindáveis esquemas e índices que ia concebendo, A Estrada do Esquecimento e Outros Contos é um conjunto mais diversificado, quer na muito variável extensão das histórias, quer no seu grau de incompletude, quer ainda na multiplicidade de registos e tópicos.

A par da guerra, outro tema recorrente neste livro é, surpreendentemente, a figura de Cristo. “São quase sempre contos sobre as fraquezas de Cristo, o seu descontentamento com aquilo que conseguiu”, precisa Ana Maria Freitas. Um Cristo demasiado humano, portanto, como o do oitavo poema do Guardador de Rebanhos, mas sem a inocência da infância.

 

Sugerir correcção
Comentar