O turismo no Estado Novo: o paraíso triste

O turismo no Estado Novo, num estudo que, apesar de algumas lacunas, constitui uma obra pioneira e de indiscutível mérito.

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Salazar instituiu padrão de “turismo médio”, o Estoril foi “excepção”, encenada “para inglês ver”

Produto de uma dissertação de doutoramento apresentada e aprovada com nota máxima na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, A Bem da Nação, como refere o subtítulo, pretende analisar as representações turísticas no Estado Novo entre 1933 e 1940. A escolha deste arco temporal não oferece dúvidas nem suscita reservas, porquanto, como explica a autora, 1933 é, a vários títulos, um “ano fundacional” do novo regime, com a entrada em vigor da Constituição Política, a instituição da PVDE ou a criação do Secretariado de Propaganda Nacional; por sua vez, 1940, com as Comemorações do Duplo Centenário, afigura-se um remate adequado para concluir este estudo.

Ainda assim, e por razões não só compreensíveis como até louváveis, Maria Cândida Cadavez não se cinge nem se deixa aprisionar na periodização que elegeu. Pelo contrário, recua ou avança no tempo sempre que tal se justifica. Por exemplo, quando aborda o lugar que a Costa do Sol ocupou na projecção de um imaginário elitista e cosmopolita, a autora retrocede aos finais do século XIX e inícios do século XX, recordando que desde 1867 a rainha D. Amélia frequentava a zona do Estoril e que em 1870 o rei D. Luís fez da Cidadela de Cascais a sua residência oficial de Verão. E, num sentido inverso, avança para lá de 1940 ao tratar do legado de António Ferro e, em particular, da inauguração das primeiras Pousadas, ocorrida entre 1942 e 1948, para não falar do lançamento, em 1941, da marcante publicação Panorama. Revista de Arte e Turismo, com direcção literária de Carlos Queirós e direcção artística de Bernardo Marques (e não Bernardo Soares, como por lapso se diz na pág. 254).   

Adoptando uma sistematização clara e facilmente apreensível, a obra encontra-se dividida em três partes, que a autora designa por “itinerários”: após uma Introdução conceptual centrada nas narrativas das nações e das representações turísticas, a Parte I procede a uma incursão pelas “entrevistas” de António Ferro a Oliveira Salazar e pelos discursos e notas políticas deste último; a Parte II aborda a criação do Secretariado de Propaganda Nacional e descreve, acompanhando com minúcia a imprensa da época, o I Congresso da União Nacional (1934) e o I Congresso Nacional de Turismo (1936); finalmente, a Parte III tem dois capítulos, sendo o primeiro uma súmula das principais realizações e iniciativas do Estado Novo no domínio do turismo e da promoção da cultura popular (v.g., as Marchas Populares, a alegria no trabalho e a FNAT, a abertura das Casas de Portugal no estrangeiro, a promoção da Costa do Sol, o concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal) e correspondendo o segundo capítulo, no essencial, a uma digressão pela figura de António Ferro e pela sua “política do espírito”.      

Sendo, como se disse, o resultado de uma investigação académica, este livro acusa, por vezes excessivamente, as marcas desse código genético. A escrita, de rara precisão e apuro formal, é entrecortada por constantes remissões bibliográficas, o que teria justificado um trabalho editorial que assegurasse uma leitura mais fluida e atraente para o público não especializado. O ponto mais crítico situa-se, porém, no facto de Cândida Cadavez ter optado por um método expositivo que, em muitos momentos, se limita a remeter para as fontes usadas e, em particular, para as opiniões e teses de diversos autores, cada qual apresentado num ou mais parágrafos, daqui resultando, no final, um aglomerado de referências alheias em que, por vezes, é difícil discernir qual a opinião desta investigadora e aferir a sua originalidade. Isto é visível sobretudo na parte mais exigente, a de enquadramento e densificação de conceitos como nação, nacionalismo, memória ou património. Escolhendo as grandes referências na matéria (Maurice Halbwachs, Eric Hobsbawn, Benedict Anderson, Ernest Gellner, Pierre Nora, Marc Augé), praticamente sem omissões ou lacunas de relevo (as mais notórias serão os clássicos Como as Sociedades Recordam, de Paul Connerton, Alegoria do Património, de Françoise Chouay, e The Past is a Foreign Country, de David Lowenthal), as conclusões a que Cândida Cadavez chega neste capítulo são algo decepcionantes. Num território melindroso e polémico como é o da definição da natureza do salazarismo, a autora diz não ser sua intenção entrar nesse debate, acabando todavia por afirmar que o regime do Estado não era “nacionalista” mas tão-só “nacionalizante”, uma vez que “se advogava mais a diferença da Nação, e não tanto a superioridade da mesma” (p. 77). Para o efeito, cita em seu abono a biografia de Salazar da autoria de Filipe Ribeiro de Meneses; simplesmente, Ribeiro de Meneses considera que o nacionalismo foi um dos fundamentos ideológicos do Estado Novo, não parecendo acolher a distinção entre regime “nacionalista” e regime “nacionalizante” que é sustentada por Cândida Cadavez (cf. Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar. Uma biografia política, 2009, pp. 107ss). Aliás, se caracterizássemos o salazarismo como (meramente) “nacionalizante”, de que forma deveríamos classificar diversas acções da Primeira República – e até da Monarquia –, em múltiplos domínios, incluindo o cultural, patrimonial ou turístico? Inclusivamente, parece emergir uma certa contradição na narrativa de Cândida Cadavez: por um lado, afirma que o regime não era “nacionalista” mas apenas “nacionalizante”, porque “advogava mais a diferença da ‘Nação’, e não tanto uma eventual superioridade da mesma” (p. 77); mas, por outro lado, ao analisar a retórica de Salazar, diz que “nela se vislumbra a evocação de uma determinada superioridade cultural claramente assumida e elogiada” (p. 87). 

Quanto aos restantes capítulos, há opções que não se compreendem, mesmo no que se refere às fontes utilizadas. Não se percebe, por exemplo, que a autora, numa citação-chave que é inclusivamente retomada na badana do livro, transcreva uma suposta afirmação de Salazar a propósito de Fátima, da mais duvidosa fidedignidade (“Deus sabe da necessidade que temos de desenvolver o nosso incipiente turismo”), constante da obra ficcionada O Diário de Salazar, de António Trabulo, mas, do mesmo passo, omita trabalhos como O Baile do Turismo. Turismo e Propaganda no Estado Novo (2003), de Ema Cláudia Pires, o qual, ainda que com pretensões mais modestas e circunscritas, aborda precisamente o mesmíssimo tema que Cândida Cadavez erigiu em objecto de estudo. De igual modo, ao conceder, porventura excessivamente, um papel nuclear a António Ferro na concepção do “programa turístico” do Estado Novo, não se entende que seja assinalada en passant a marcante viagem aos Estados Unidos do autor de Homens e Multidões mas que não se escrutine – nem sequer se cite – o seu livro Novo Mundo, Mundo Novo, de 1930, o qual, para mais, tem diversas passagens sobre o turismo na América e os hotéis de Nova Iorque, que Ferro apelidou de “grandes armazéns de hóspedes”. Teria sido interessante indagar, por exemplo, se muito do que António Ferro projectaria depois para os nossos estabelecimentos turísticos (v.g., as Pousadas) não se situava precisamente nos antípodas daqueles «grandes armazéns de hóspedes» com que se deparara em Manhattan. Poderá dizer-se, é certo, que a autora não pretendeu elaborar uma biografia de António Joaquim Tavares Ferro. No entanto, tal intenção transparece neste livro, nomeadamente a páginas 248 e seguintes, pelo que não se compreende que Cândida Cadavez tenha perscrutado – e bem – o espólio de Ferro depositado na Fundação António Quadros, mas não se detenha, por exemplo, no relato memorialístico da sua mulher, Fernanda de Castro, publicado em 1986.  

De igual modo, ao discorrer sobre o Estoril como instância de férias ou morada de hóspedes ilustres, cujos nomes a autora se limita a enunciar num parágrafo (p. 242), dever-se-ia ter consultado, pelo seu manifesto interesse testemunhal, a obra Exilados Régios no Estoril (1955), de Julien Sauerwein. Isto sem falar, obviamente, de livros importantes sobre a história do Estoril, tais como, entre outros, De Cae Água a São Pedro do Estoril (2005), de Ana Cristina Antunes, Carlos Miguel Ferreira e Francisco Pereira; De Lisboa a Cascais. Rostos, liberdade e medicina (2002), de Luísa Vilarinho; O Plano de Urbanização da Costa do Sol (2009), de Margarida Pereira e outros; Da Riviera Portuguesa à Costa do Sol (Cascais, 1850-1930), de João Miguel Henriques (2011). Do mesmo modo, a recensão das opiniões de estrangeiros sobre Portugal – um ponto fundamental numa obra sobre esta temática – é limitada ao que disseram sobre o Estoril e Cascais os nomes que há muito conhecemos (Ralph Fox, Mircea Eliade, Saint-Exupéry, Ann Bridge e Susan Lowndes e Christine Garnier). Neste particular, o livro fica aquém, inclusive, de obras de menor densidade, como as de Neill Lochery ou de Ronald Weber. Não se abordam, o que teria sido importante, as apreciações feitas por repórteres ou outras personalidades estrangeiras que passaram por Portugal, como, por exemplo, aquilo que, nas suas memórias, nos conta Nubar Gulbenkian sobre a hotelaria no Buçaco, os ex-monarcas e aristocratas exilados no Estoril ou o quotidiano no Hotel Aviz (cf. Nubar Gulbenkian, Pantaraxia. Autobiografia, trad. portuguesa, 2015).

Não se julgue que esta enumeração de falhas bibliográficas tem a pretensão de constituir-se em arguição académica ou exercício de erudição livresca. É que, a par ou em consequência de tais lacunas, o produto final acaba por se ressentir quanto a algumas das conclusões que a autora alcança, por vezes pouco esclarecedoras. Por outro lado, e apesar de uma fugaz menção ao Patronato Nacional de Turismo Español e ao Ente Nazionale Italiano per il Turismo, a ausência de uma perspectiva comparativa não nos permite descortinar o que de específico – ou de especificamente “nacionalizante” – houve no “turismo salazarista” em confronto com regimes coetâneos. De igual modo, fica por determinar, no cotejo com a aproximação ao turismo feita pela Primeira República (objecto do excelente Viajar. Visitantes e Turistas à Descoberta de Portugal no Tempo da I República, catálogo coordenado em 2010 por Maria Alexandre Lousada e Ana Paula Pires), em que residiu a especificidade do Estado Novo em muitas das suas realizações, práticas discursivas e representações simbólicas. Mesmo antes da República, não eram “nacionalizantes” o propósito e a retórica da Sociedade de Propaganda de Portugal, instituída em 1906?

O livro defende que foi o Estado Novo a instituir um padrão de “turismo médio”, sendo o Estoril uma “excepção”, encenada “para inglês ver”. Se é incontestável a instauração, pelo Estado Novo, de um padrão de “turismo médio”, num programa em que a FNAT teve papel essencial (o que justificaria ter atentado na mais recente obra de José Carlos Valente, Para a História dos Tempos Livres em Portugal – Da FNAT ao INATEL, 2010), a projecção da “Riviera portuguesa” como um local de veraneio e estância de lazer das elites é muito anterior e remonta a finais da Monarquia, tendo-se prolongado nas primeiras décadas do século XX. Já em 1919, por exemplo, Fernando Pessoa redigira o texto Notas para uma Campanha de Propaganda da Costa do Sol e, antes disso, fora aprovada em 1911 e nos anos vindouros legislação sobre o turismo, para não referir que desde 1835 existia uma Planta de Banhos do Estoril e que a “descoberta” deste último, designadamente por Fausto de Figueiredo, é muito anterior ao Estado Novo, como anteriores são as primeiras obras que garantiram uma melhor acessibilidade à Linha: um diploma de 1914 declarara a importância de dotar a linha férrea de Cascais de tracção eléctrica; em 1923, a exploração dessa linha era feita pela Sociedade Estoril e a sua electrificação foi inaugurada em 1926. Do ponto de vista rodoviário, as primeiras referências a uma eventual construção de uma estrada marginal entre Algés e Caxias datam de 1918, e esse projecto seria defendido veementemente pela Junta Autónoma das Estradas logo que foi criada, em 1927. Assim sendo – e além de uma natural diferença de escala e de número de iniciativas –, o que, na essência, trouxe o salazarismo de verdadeiramente novo ou original neste campo?

Por outro lado, se o Estoril durante o salazarismo serviu de palco privilegiado para a disseminação da ideia de que a prática desportiva era um meio essencial para se atingir o “Homem Novo”, o facto é que, como a autora refere logo de seguida, o culto do bem-estar físico e a sua associação aos Estoris fora feito já em 1907, no 15º Congresso Internacional de Higiene, e reiterado em 1910 pelo médico Daniel Dalgado e por Raúl Proença em 1924, no Guia de Portugal. Em face disso, seria fundamental, por um lado, determinar o que se entende por “Homem Novo” e, por outro lado, encontrar e apresentar elementos que comprovassem a tese, plausível em abstracto, do recurso à Costa do Sol como espaço emblemático de exposição do citado “Homem Novo” salazarista. Na capa do livro, uma expressiva fotografia de jovens com a farda da Mocidade a marchar numa praia da Linha. Era exactamente o levantamento deste tipo de actividades que poderiam alicerçar a tese de Cândida Cadavez e que, como tal, deveriam ter sido estudadas de uma forma mais sistemática e aprofundada. Desde logo, teria sido interessante atentar no discurso “Educação Física e Desportos”, proferido por Salazar aos clubes desportivos de Lisboa, em Dezembro de 1933, em que o Presidente do Conselho lamenta saber que aos domingos os cafés da capital se enchiam de “jovens, discutindo os mistérios e problemas de baixa política, e ao mesmo tempo ver deserto esse Tejo maravilhoso, sem que nele remem ou velejem, sob o céu incomparável, aos milhares, os filhos deste País de marinheiros!”. Na ausência de uma concretização, apoiada em tópicos como este, do que seja o “Homem Novo”, fica por esclarecer por que motivo os Estoris seriam o seu espaço ideal de afirmação, ao mesmo tempo que serviam de lugar de recreio e lazer das elites; acaso se circunscreveria o “Homem Novo” às classes altas ou a Costa do Sol serviu um duplo propósito, envolvendo elites e cidadãos comuns, algo que a autora não assinala devidamente?

Importa, no entanto, deixar muito claro que o apontamento destas questões pretende tão-só contribuir para o diálogo crítico em torno de uma obra que inquestionavelmente o merece, dado o seu indiscutível interesse e, num juízo global, a sua significativa qualidade. Sem apresentar erros do ponto de vista factual (há apenas pequenos lapsos, como afirmar na pág. 221 que Fausto de Figueiredo apresentou em 1914 uma brochura sobre o Estoril à Assembleia Nacional, órgão que não existia na altura), trata-se, ao que sabemos, do primeiro grande trabalho sobre o turismo no Estado Novo – ou, melhor dizendo, desde os alvores do regime, em 1933, às comemorações de 1940 –, que descreve de um modo informado e com base num escrupuloso esforço de investigação e pesquisa, diversos pontos de grande relevância, desde a visão pessoal de Oliveira Salazar, plasmada nas entrevistas a António Ferro e nos seus discursos, até aos primeiros congressos que se debruçaram sobre a actividade turística, passando pela acção do Secretariado de Propaganda Nacional e as suas inúmeras realizações, as quais foram estudadas, numa perspectiva diversa, por Daniel Melo ou Vera Marques Alves.

Em síntese, A Bem da Nação confirma o domínio desta temática por parte de Cândida Cadavez, patente na sua extensa lista de publicações nacionais e internacionais sobre a matéria, inclusive em obras prestigiadas como The Routledge Handbook of Cultural Tourism. Recomenda-se a leitura deste livro, bem informado e muito informativo, aos interessados na história do Estado Novo e também aos responsáveis e profissionais do sector do turismo. Não para tirar lições para os nossos dias, mas para conhecer um passado ainda presente, e aqui desvendado de uma forma séria e rigorosa, através de uma escrita que, repete-se, prima pela sua qualidade formal.

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