O Novo Testamento num pequeno cabaret pop

No último Fringe, Lucy McCormick causou sensação com Triple Threat, uma visão do Novo Testamento muito pessoal e segundo um código da cultura pop. Esta semana na Culturgest, em Lisboa, e na Mala Voadora, no Porto.

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Talvez o gesto mais radical e marcante de Triple Threat seja a forma como Lucy McCormick reivindica o seu direito sobre esta história profundamente enraizada na cultura ocidental Soho Theatre Lucy McCormick Production
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Lucy McCormick não esconde que Triple Threat é, para si, uma peça tão séria e profunda quanto ridícula e parva. Espectáculo-sensação do último Fringe em Edimburgo, Triple Threat pode ser descrito como uma reinterpretação do Novo Testamento à luz de uma desbragada cultura pop que McCormick carrega no corpo e na voz.

Dividindo com enorme leveza a história que quer contar em três momentos – “o nascimento de Jesus Cristo; vida, tentações, milagres, arrependimento e morte; o bocadinho depois da morte” –, a criadora inglesa parece abordar essa narrativa fundamental para a cultura ocidental como se tivesse sido adaptada para Christina Aguilera interpretar num pequeno cabaret.

Sim, é tão livre, imprevisível, hilariante e provocador quanto isso aquilo que Lucy McCormick mostra esta quinta e sexta-feira e sábado na Culturgest, em Lisboa, e, no domingo, na Mala Voadora, no Porto, no único momento de 2017 para o programa Uma Família Inglesa que a companhia portuguesa começou a apresentar regularmente há dois anos.

Lucy conta ao PÚBLICO que começou por fazer algumas apresentações em nightclubs, histórias de dez a 15 minutos, que devido ao contexto em que eram apresentadas “tinham de ser muito sonoras e visuais”. Ao longo de um ano foi testando este modelo, encenando momentos como a Quaresma ou a Natividade, até sentir que, na verdade, estava a preparar algo de um outro fôlego. A matriz permaneceu, no entanto, marcada pelo excesso e por uma forma ruidosa, sexualizada e desenfreada de abordar as temáticas bíblicas. “Foi num espectáculo de Natal que decidi montar uma Natividade e foi quando percebi que podia associar-lhe um número de música e dança que tive a ideia do espectáculo total e de ir continuando.”

Quando começou a pensar na forma a dar a Triple Threat – código para sing, dance and act, santíssima trindade dos palcos que Lucy gostava de ver transformada ao manter o canto e a dança mas substituindo a representação tradicional por artes performativas ou simplesmente por “ser muito selvagem” –, viu-se a reflectir sobre como criar “material que lidasse com a grandiosidade da vida e da morte”, mas que contemplasse o absurdo e tivesse o poder subversivo, corrosivo e desestabilizador de uma comédia negra. “Ao vermos a personagem como uma pessoa que vive muito rapidamente e caminha para o fim, isso faz com que a peça, para mim, seja também muito sobre a morte, o luto e ter de fazer as pazes com isso”, diz. O absurdo aparece, por exemplo, no momento em que McCormick resolve encenar o nascimento de Jesus Cristo na perspectiva do bebé. Mas é um absurdo que, no limite, põe em causa a credulidade com que são aceites certos relatos. É um desafio ao questionamento de todas as versões de toda e qualquer história.

Sabendo que nem toda a gente concorda quando diz que não se desvia grandemente da narrativa oficial – apenas a interpreta com uma imensa liberdade de espírito –, quase se poderia dizer que Lucy McCormick se limita a relatar o Novo Testamento com aquilo que tem à mão. “E quais são as ferramentas à minha disposição?”, pergunta. “Qual é a minha religião ou congregação religiosa? Quais são os meus hinos, as minhas orações, os textos sagrados da minha vida? Faço da cultura pop a religião ou o sistema em que o meu trabalho se insere e são essas as regras que sigo. Obviamente de uma forma ridícula, pensei também em usar a história de Jesus para me religar à minha própria consciência moral.”

Sem ofensa

Em Triple Threat, há Nutella servida como tentação, dedos dos dois assistentes em estimulação abertamente sexual, beijos trocados entre Jesus e Judas, canções de Justin Bieber, Lady Gaga ou Aguilera como banda sonora. O nível de provocação é elevado, mas Lucy McCormick acredita que não se trata de uma peça agressiva ou ofensiva e que, no fundo, ninguém está mais exposto ao ridículo do que ela própria. “A história funciona como uma premissa”, relativiza. “Claro que é um pouco maliciosa e bastante grosseira, mas espero que o público sinta que é quase uma desculpa para eu fazer uma série de coisas diferentes e explorar temas que são mais abrangentes.” É também um teste, admite, a quão longe cada espectador está disposto a ir e aceitar isso numa performance e numa comédia. Se “religião e teologia assentam num questionamento da forma como vivemos”, argumenta, então Triple Threat questiona a forma como se vive em palco.

McCormick confessa ter um fraquinho por “temas grandiosos como o amor, a esperança, a fé ou o sacrifício”, mas há também uma noção clara de subversão na forma como reclama para o seu corpo feminino uma narrativa quase exclusivamente contada por homens. Chama, por isso, Maria Madalena para a cena e encarna, já no fim, uma Virgem Maria que “tem um colapso num dos momentos mais difíceis da peça”. “Acho que perderia sem essa cena, porque lhe acrescenta uma camada mais negra.”

Talvez, todavia, o gesto mais radical e marcante de Triple Threat seja a forma como Lucy McCormick reivindica o seu direito sobre esta história profundamente enraizada na cultura ocidental. A ideia que parece prevalecer é a de que, estando a Bíblia tão entranhada nas vidas quotidianas através de estruturas sociais e políticas – mesmo para quem não tenha uma relação próxima com a religião –, a sua presença universal torna-a passível de ser integrada e devolvida ao mundo segundo um olhar totalmente pessoal. Este é o seu. Sem ofensa.

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