O mito de Orfeu a planar sobre Tennessee Williams

Segunda de três investidas de Jorge Silva Melo em Tennessee Williams, é uma peça oferecida pelo encenador aos actores Rúben Gomes e Maria João Luís.

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Em palco, Jorge Silva Melo revela-se sobretudo encantado por “ouvir a prosa poética e desarrumada de Tennessee Williams Nathan Benn/Ottochrome/Corbis

“Foi há uns três anos, num ensaio final de Dias de Vinho e Rosas, de Owen McCafferty, em que olhava com admiração para o Rúben Gomes que me pus a pensar que outras peças lhe poderia propor”, recorda o encenador Jorge Silva Melo.

Foi então que lhe ocorreu, num repente, “todo o Tennessee Williams”. Depois afunilou e pensou nos mesmos papéis que Paul Newman protagonizara no grande ecrã, sob a direcção de Richard Brooks: Chance Wayne em Doce Pássaro da Juventude, Brick em Gata em Telhado de Zinco Quente. E, logo depois, os restantes elencos desataram a clarificar-se na sua imaginação, com Catarina Wallenstein e Maria João Luís à cabeça. “E ao lembrar-me da Maria João Luís também me deu vontade de ver A Noite da Iguana com ela e o Marco Delgado e a Maria João Pinho. Numa cidade em que os actores têm o nome nos cartazes ao lado do do autor, quem me afastaria da bilheteira que anunciasse estes elencos e este autor?”, atira.

A sua versão de Gata em Telhado de Zinco Quente estreou-se em Setembro de 2014, Doce Pássaro da Juventude ocupa o palco do Teatro São Luiz entre 10 e 26 de Abril, A Noite da Iguana chegará em 2017. Silva Melo concretiza assim este gosto por “frequentar um autor através de várias obras”. “Fiz isso com Sarah Kane, Fosse, Pinter, Pirandello, Enda Walsh… É como se tivesse realmente uma companhia, um elenco, um repertório, um trabalho, uma poética a convidar. E é tão surpreendente voltar em pouco tempo a um mesmo autor, parece que já lhe conhecemos as artimanhas mas somos sempre surpreendidos.”

Não esconde que “é impossível” esquecer os dois filmes (Gata e Doce Pássaro) realizados por Richard Brooks, de tal forma “foram marcantes e tão importantes a inaugurar uma espécie de idade adulta do público cinematográfico”. Em palco, no entanto, com um menor pudor na abordagem da sexualidade e da política, o encenador revela-se sobretudo encantado por “ouvir a prosa poética e desarrumada de Williams, sentir-lhe o pulso a bater – e nisso, nada como os actores vivos debatendo-se com estas cenas cruéis”. Conhecedor profundo dos filmes, garante só já ver os seus actores e o texto a partir do momento em que os ensaios arrancam. Nessa altura, o cinema varre-se-lhe (tanto quanto possível) da memória.

A planar
Até porque, como diz a propósito da sua relação com Maria João Luís, não há lugar a “grandes conversas” na preparação das peças. “É deixar correr, deixar andar… e adoro estar na sala de ensaios a vê-la dedilhar as cordas das personagens que inventamos.” Para a actriz, um dos aliciantes deste encontro artístico é precisamente a delicadeza que Silva Melo coloca na encenação, sem forçar caminhos, partilhando histórias que fornecem pistas que empurram os actores para dentro de si mesmos e para as suas próprias soluções, nunca para uma resposta imaginada às intenções do director. “Ele acredita na inteligência dos actores, acredita que estamos a fazer o nosso trabalho e somos capazes disso”, reforça Maria João Luís. Daí que cada peça acabe fatalmente por significar também uma revelação para Silva Melo, que confidencia o seu encanto com “o modo como o Rúben encontrou a dolência de Brick e o nervosismo juvenil de Chance”. “É também isso que queria, acreditar que os actores descobrem nas personagens segredos que não sabíamos.”

Magníficos que foram Paul Newman e Geraldine Page, aqui os temos Rúben Gomes e Maria João Luís, espantosos nas suas contendas individuais com o passado, amparando-se mutuamente mas prontos a largar o outro assim que uma chamada de Hollywood os possa reclamar para uma outra vida – ela convencida de que o seu comeback foi um desastre (que não foi); ele empenhado em reconquistar a sua amada Heavenly e, assim, salvar-se do desastre (que há-de ser). “Ele nunca viveu o que queria; ela perdeu a glória da sua juventude”, resume Jorge Silva Melo. E cita o persistente mito de Orfeu a planar sobre os textos de Tennessee Williams, daquele vai tentar “resgatar passado e amada aos infernos”. “É um inferno que estas personagens têm de atravessar para nunca reconquistar” aquilo que perseguem a cada momento: o tempo que passou.

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