O microcosmo da cantata barroca por intérpretes de eleição

Um momento marcante do ciclo de música antiga da temporada Gulbenkian.

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Ana Quintans cantou com impecável graciosidade a cantata No se enmendará jamás dr

Quatro intérpretes admiráveis e um belíssimo programa com cantatas, duetos e música instrumental do barroco italiano e ibérico (incluindo obras de Händel, Agostino Steffani, Alessandro Scarlatti e Jaime de la Té y Sagau, entre outros) fizeram do concerto Dialogo D’Amore na passada quinta-feira um momento marcante do ciclo de música antiga da temporada Gulbenkian.

A soprano Ana Quintans e o contratenor Carlos Mena são, como é do conhecimento do público melómano da música antiga e não só, cantores de primeiro nível no âmbito deste universo, com uma sensibilidade artística que partilha inúmeras afinidades, tanto no plano da abordagem estilística como no cuidado que demonstram na relação texto-música e na subtileza com que usam matizes de colorido e dinâmica.

Os seus timbres também combinam muito bem, como têm demonstrado outras apresentações ao vivo e a gravação da serenata Il Trionfo d’Amore, de Francisco António de Almeida, na recente edição da Naxos com os Músicos do Tejo. O director musical deste agrupamento, Marcos Magalhães, foi também o mentor do programa Dialogo D’Amore e um elemento chave da interpretação como cravista em colaboração com Daniel Zapico na tiorba e na guitarra barroca.

Os dois instrumentistas mostraram igualmente uma grande sintonia com o universo da cantata de câmara através de realizações imaginativas do baixo contínuo, sempre bastante atentas ao carácter das obras — recorde-se que neste repertório o registo da parte instrumental na partitura se limita à linha do baixo com cifras, devendo os intérpretes realizar as harmonias e enriquecer a textura com outras figurações.

Também nas intervenções puramente instrumentais ousaram apostar na componente da improvisação a partir de excertos de obras conhecidas (de François d’Agincourt, Frescobaldi, Kapsberger, Soler e Sanz), especialmente baseadas em baixos ostinatos ou em fórmulas de dança, recriando assim com vivacidade e virtuosismo uma prática habitual nos séculos XVII e XVIII ainda relativamente pouco presente nas salas de concerto do circuito mais convencional da música erudita.

Um programa construído com grande clareza estrutural atribuiu duas cantatas a solo a cada um dos cantores e dois duetos, cruzando as principais tendências destes repertórios através de alguns dos seus principais expoentes. Cada obra constitui um microcosmos de affetti, ideias poéticas ou dramáticas condensadas num ambiente intimista que exige dos intérpretes um trabalho meticuloso e subtil que se afasta do imediatismo mais espectacular da ópera.

Carlos Mena abriu o concerto com uma interpretação cuidada da cantata Dolce pur d’amor l’affano, de Handel, mas foi em Aguarda, espera, de Jaime de la Té y Sagau (1684-1736), prolífico compositor e impressor catalão que viveu mais de 30 anos em Lisboa, que nos deslumbrou com o fulgor que imprimiu às árias e coplas e a inteligência com que cantou o recitativo.

Por seu turno, Ana Quintans cantou com impecável graciosidade a cantata No se enmendará jamás, composta por Händel sobre um texto espanhol durante o seu período romano, e ofereceu-nos uma interpretação notável do ponto de vista dramático e expressivo de Euridice dall’Inferno, de Alessandro Scarlatti.

No que diz respeito aos duetos, Occhi, perchè piangete? de Agostino Steffani é especialmente demonstrativo da mestria do seu autor neste género musical e resulta surpreendente pelo seu contraponto cromático e pela variedade de expressão que confere a cada frase do texto num ambiente de forte densidade emocional. Foi também um excelente veículo para mostrar a estreita cumplicidade entre Ana Quintans e Carlos Mena, a qual se manifesta ao nível do mais pequenos detalhes e se tornou ainda mais evidente no dueto final (o conhecido Tanti strali al sen mi scocchi, de Handel) numa prestação empolgante. Como encore uma surpresa: um lundum e uma modinha a duo mostraram o contributo português para o repertório de salão setecentista.

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