O leitor incomum

Em George Steiner em The New Yorker, a leitura entendida como uma das belas-artes.

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O texto é a pátria de George Steiner, o polígrafo poliglota Miguel Madeira/arquivo

O texto, como sabemos, é a pátria de George Steiner (1929), o polígrafo poliglota. O texto (sobretudo o de matriz hebraica ou helénica ou latina), e não apenas uma língua particular — ou não fosse ele um comparatista exímio e um tradutólogo brilhante. O grande professor em meia-dúzia de universidades “topo de gama” e eminente crítico em outros tantos jornais ou revistas “líderes de mercado” (e o desdém aparente das aspas sinaliza os avatares persuasivos do momento e do contexto) escreveu em 1978 um texto intitulado O Leitor Incomum, posteriormente acolhido no volume de ensaios Paixão Intacta. Nele se analisa uma pintura de Chardin, Le Philosophe Lisant (1734), que retrata alguém a ler um livro. Steiner descreve (ao pormenor, dir-se-ia em português contemporâneo) a pose e o traje da personagem, o cenário e os objectos, para sublinhar uma espécie de sacralidade (ainda que íntima e doméstica) e de cerimonial seriedade que acompanhava e sustinha o acto de ler.

O livro que o leitor de Chardin lê ou aparenta ler chega a parecer-nos mero pretexto para o acto encenado no exercício mundano do retrato, como se, no plano conceptual, Steiner tivesse cedido, ou se preparasse para ceder, às tecnologias interpretativas do momento: o pós-estruturalismo, o desconstrucionismo, etc. Mas logo o professor Steiner nos reconduz à centralidade do livro no quadro e percebemos que a digressão descritiva foi propedêutica. Prefaciava a reafirmação steineriana da leitura como arte grave, arte do sentido e da memória, e como acto eticamente exigente, e comprometido com uma verdade e uma história.

A leitura — insiste Steiner ao arrepio das ‘tendências’ da época — deve servir o texto que a precede e excede e o leitor competente, o “bom” leitor, está condenado a ser um leitor incomum, reactualizando (ainda que à custa de “escolas de leitura criativa”) o tópico da pintura convencional de Chardin. “Não é um verdadeiro leitor, um philosophe lisant” — lembra Steiner —, “aquele que nunca sentiu o fascínio acusador das grandes prateleiras de livros não lidos, das bibliotecas à noite de que Borges é o fabulista. Não é um leitor aquele que nunca ouviu, no seu ouvido mais íntimo, o apelo […] dos milhões de volumes alinhados nas estantes da British Library ou de Widener, pedindo que os leiam” (citamos a tradução de Margarida Periquito e Victor Antunes publicada em 2003 pela Relógio D’Água). E quando Steiner confessa mágoas e omissões — “Já uma dúzia de vezes me aproximei furtivamente da descomunal história de Sarpi do Concílio de Trento […], ou da opera omnia de Nikolai Hartmann, na sua majestosa encadernação; nunca conseguirei levar de vencida as dezasseis mil páginas do diário de Amiel […]”; “os oito volumes, não lidos, da grande história diplomática da Europa e da Revolução Francesa, de Sorel, perseguem-me” —, só o faz porque na assunção retórica dessas falhas e culpas não se revela menos a sua qualidade extrema de leitor incomum e virtuosístico (também no sentido musical e performativo).

A bibliografia activa de Steiner ultrapassa as três dezenas de títulos, quase todos traduzidos e publicados em Portugal (incluindo as sua incursões marginais na ficção), facto que certificará uma “popularidade” que não deixa de ser enigmática. O volume agora publicado, George Steiner em The New Yorker, colige 28 dos mais de 150 textos que o autor publicou na revista nova-iorquina entre 1967 e 1997. A selecção e a organização dos artigos (não creditadas) devem-se a Robert Boyers (editor da Salmagundi, revista com a qual Steiner também colaborou), que assina a Introdução. Os textos estão distribuídos por quatro secções temáticas: História e Política, Escrita e Escritores, Pensadores e Estudos de Uma Vida. As secções do meio acolhem dois terços dos artigos. Tal partição parece-nos, por vezes, um tanto forçada e, sobretudo, desnecessária.

Soljenitsine é tema de dois ensaios, a propósito do terceiro volume de O Arquipélago Gulag e de Lenine em Zurique, encaixados respectivamente na primeira secção e na segunda. Mas será o segundo livro (e a leitura de Steiner) menos relacionável com História e Política do que o primeiro? Teria sido preferível alinhar cronologicamente os ensaios. Lamentavelmente (e talvez seja este o senão desta colectânea, único mas irritante), os textos nem sequer estão datados, falha já verificada na edição original norte-americana (New Directions, 2009). Tal não pode deixar de surpreender, reconhecendo Boyers na sua introdução que, para Steiner, “o contexto é de extrema importância”. Parece-nos que não será abusivo considerar que o contexto, nomeadamente o contexto temporal, não sendo de “extrema importância” para a leitura destes ensaios, sempre terá alguma importância. É claro que, no caso de um texto como aquele sobre 1984, depressa concluímos que terá sido escrito nas vésperas do ano orwelliano (a The New Yorker publicou-o em Dezembro de 1983). Porém, quando se trata, por exemplo, de um autor tão polémico e intratável quanto Céline, que Steiner abordou pela primeira vez nas páginas da revista nova-iorquina em 1968, não seria supérfluo especificar que o artigo coligido neste volume, Homem-Gato, foi publicado em Agosto de 1992.

Coisa semelhante se poderia dizer, aliás, a propósito das leituras de Soljenitsine, pois é difícil não relacionar a recepção algo grandiloquente de que o autor russo é objecto com o contexto epocal. O ensaio inaugural da compilação, e o mais extenso, intitula-se O Sacerdote da Traição e Anthony Blunt, o crítico de arte e espião inglês, é o seu tema. Abundam no texto as âncoras temporais: “O seu aparecimento [de Blunt] na televisão na terceira semana do passado mês de Novembro foi um momento clássico”; “Quando a Academia Britânica celebrou a sua reunião do passado dia 3 de Julho, […] a questão da permanência de Blunt foi levantada”, etc. Não conviria, para não dizermos mais, a uma informada leitura e interpretação desta excelente peça jornalística, saber que foi publicada no dia 8 de Dezembro de 1980?

Seja como for, e para além da circunstância temporal e da maior ou menor pompa que esta sempre convoca, George Steiner em The New Yorker é, na sua estonteante e labiríntica malha de alusões, na sua vertiginosa sucessão de referências e citações, mais um exemplo, acabado e acessível, da leitura entendida como uma das belas-artes. Bela (hélas!), nobre e responsável. A “leitura séria” do maître à lire Steiner (que outro intelectual se atreveria hoje a convocar Alain ou Péguy, por exemplo?) não descarta nunca a “ética do senso comum”. Nem Steiner descarta a condição de “criador por direito próprio” que só um crítico com a grandeza do autor de Antígonas e de Depois de Babel pode reclamar para si. Daí que, quando por vezes irrompe no discurso uma imagem que suspende a teia densa da argumentação autorizada e confrontada, nos sintamos surpreendidos. Como quando, a propósito da indiferença de Orwell à metafísica e à grandiloquência, comenta: “A sua sensibilidade áspera era tão resistente à elevação como um bolo num café inglês, numa noite de Novembro.” Ou no final do breve artigo La Morte d’Arthur (o título surge nesta edição grafado “Le Morte…”), publicado em 1984 e escrito na sequência do suicídio de Arthur Koestler e da mulher, no ano anterior. Relembrando Steiner um passeio nos arredores de Alpbach, no Tirol (“nas montanhas asturianas”, lê-se, inexplicavelmente, nesta edição portuguesa), onde o autor de O Zero e o Infinito se refugiara, tropeçamos nesta anotação: “Quando Koestler e eu voltávamos para sua casa, sob um tumulto de estrelas no céu límpido da montanha, […]”.

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