O jazz é coisa de brincar ao futuro

Thundercat, o homem que em discos de Kendrick Lamar e Kamasi Washington estava nos bastidores, chega-se à frente. Drunk é maravilha, irmãos.

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A noite de quinta para sexta feira da semana passada foi agitada – não à conta de um tweet (ou uma bomba) de Donald Trump, não por causa de mais um escândalo da bola lusa, nem por as redes sociais terem descoberto que Cristo morreu outra vez, o que, como alguém escreveu, nos dias de hoje faz dele pouco mais que um Vasco Granja do Catolicismo; o que se passou é que enquanto os contribuintes dormiam Kendrick Lamar punha cá fora novo disco – e de manhã este já era considerado um “game changer”.

É assim que as coisas são na era do Grab'em By the Pussy: é preciso ter opinião mesmo antes de ouvir com calma. Quem colocou tanto empenho e suor a entronizar Lamar errou o alvo mas só um bocadinho: bastava apontar ligeiramente para o lado e os elogios seriam merecidos; era só dedicá-los a um amigo de Lamar que podemos descrever como o dono de Turbo Tron Over 9000 Baby Jesus Sally.

Turbo Tron Over 9000 Baby Jesus Sally, também conhecido por Tron, é o gato de Thundercat, músico de sessão da zona de Los Angeles e senhor de uma carreira a solo desconhecida do grande público. Drunk, o terceiro álbum que lançou em nome próprio, saiu em final de Fevereiro, de forma discreta, e foi lentamente ganhando mais e mais adeptos, gente boquiaberta com o grau de invenção de uma música que salta com facilidade entre a soul, o funk, o jazz, guitarras wah-wah e miados (sim, miados).

Friend Zone

Isto é apenas uma tese individual, mas estamos em crer que o game changer pode muito bem ser Drunk – sendo que Lamar também faz parte desta história, porque além de colaborar regularmente com Stephen Bruner (nome de nascença do dono de Tron) também não costuma poupar nos elogios ao amigo, trazendo-lhe visibilidade.

Lamar não é a única estrela amiga de Bruner, cuja agenda telefónica mais parece uma galáxia – além de Lamar ele colaborou com Kamasi Washington (que nos falou dele, quando o entrevistámos) em The Epic (2015), Flying Lotus (em Cosmogramma, de 2010, Until the Quiet Comes, de 2012, e You're Dead!, de 2014), Erykah Badu (nos soberbos New Amerycah, de 2008, e New Amerycah Part Two, de 2010) ou os Sa-Ra Creative Partners (em The Hollywood Recordings, de 2007, e Nuclear Evolution: The Age of Love, de 2009).

A lista, note-se, continua.

É mais que amizade: Drunk, um portento de invenção, foi lançado na Brainfeeder, a editora de Flying Lotus, que também acolheu The Epic, de Kamasi Washington. O pormenor não passou despercebido à Vice, que recentemente publicou um artigo chamado “Way Out West: How Flying Lotus, Kamasi Washington, and Brainfeeder Are Bringing Jazz Back to the People”. É um long-read, que pode quilhar-vos o scroll, de tão pesado que é, mas merece ser lido. Segundo a publicação americana, Flying Lotus, Kamasi, Lamar, Thundercat não podem ser vistos como autores individuais, unidades separadas, antes como um todo geracional que parte do jazz para o subverter e o devolve, quase irreconhecível, às pessoas.

Bom, caso não tenham reparado, há pouco estava a mentir: quando disse que “estamos em crer que o game changer pode muito bem ser Drunk”, isso não é “apenas uma tese individual”: há mais gente a pensar assim. Anyway, a questão geracional talvez explique porque é que foram os millenials a adoptar Drunk: trata-se da primeira malta que cresceu a não ouvir jazz – não porque o rejeitassem mas porque não foram expostos a ele. Este som é inteiramente novo para esta garotada. Valha a verdade, em certa medida este som é novo, ponto final.

A primeira vez que o povo ouviu falar em Stephen Bruner foi como baixista dos Suicidal Tendencies, banda de guitarras cujo som não podia estar mais longe do que se ouve em Drunk (graças a Deus, né?).

Nascido em Los Angeles, Thundercat deve os seus genes a Ronald Bruner, seu pai e um senhor baterista que muito contribuiu para o aumento da taxa de natalidade no mundo ocidental – não por espermatozóide mas por baqueta: ao fim e ao cabo, o seu currículo inclui gente como Gladys Knight, os Temptations ou Diana Ross. Por isso não admira que Stephen diga que cresceu “a ouvir jazz – os Joe Hendersons, os Oliver Nelsons, os Miles Davis desta vida”, como contou recentemente. Claro que “também [cresceu] a ouvir os Slipknot, os Korn e os Rage Against the Machine”, mas nenhuma infância é perfeita.

Isto não é só discurso – a verdadeira razão pela qual ele se juntou à banda é que esta era a banda do seu irmão, Ronald Jr, com quem sempre tocou. Actuaram juntos, por exemplo, no John Coltrane Jazz Festival, ao lado de Kamasi, em 1999. “Nessa altura não nos conhecíamos”, contava Flying Lotus, no texto da Vice. Os Young Jazz Giants, a banda de Stephen, Ronald e Kamasi, ganharam a competição organizada pela família de Lotus (que é sobrinho-neto de Alice Coltrane). Os mais espirituais chamariam a isto karma.

Bruner ainda estava no liceu quando foi chamado a substituir Trujillo nos Suicidal Tendencies - este juntou-se aos Metallica (em certas coisas a música funciona como o futebol, com transferências milionárias). Mas já não era um garoto quando Erykah Badu o resgatou para o lado bom da força, longe de guitarras analfabetas. Ali por 2007 Erykah reuniu uma trupe bacana para bulir New Amerykah e um dia ficou de orelhas espetadas perante um tema magistral surgido nessas sessões. “Ela perguntou quem tinha escrito aquilo. Tinha sido eu. A partir dali tornámo-nos inseparáveis”, recordava Stephen em entrevista à Spin.

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A canção, chamada The Hump, era um prodígio de sensualidade, o tipo de som que um Gabriel põe a tocar e imediatamente conquista uma Maria, mesmo que esta seja casada, com a sua batida lenta, os seus órgãos e aquele truque – que ele repete em Drunk – de haver uma segunda parte radicalmente diferente (tudo repleto de metais e feito à medida para a voz de Erykah).“Foi Erykah quem me ensinou a ser artista”, continuava ele – e seja lá isso de ser artista o que for. “Ela guiou-me pela mão”, dizia, “explicou-me como as coisas funcionam”.

Aparentemente, Badu ter-lhe-á dito que as coisas não têm de funcionar sempre da mesma maneira, pelo menos a avaliar pela loucura de Drunk. Como explicar o que anda por este disco? Derivado preguiça vamos recorrer a uma imagem que a Spin usa, quando escreve que Thundercat tem “o surrealismo de um George Clinton que vive na porta ao lado”. De uma penada situa-se o berço da música de Thundercat no baixo (o seu instrumento de eleição), e deixa-se claro que o grau de inventividade desta música é elevado.

Trata-se daquele tipo de disco que tem a faixa proto-funk perfeita (Friendzone, canção absolutamente magistral, que seria single do ano em qualquer país de bom gosto) ao lado da cantiga em que se mia por cima de uma guitarra wah-wah. Gostava de afiançar com certeza de que se trata de uma guitarra mas não consigo. Aquele tipo de disco em que soul caliente à Barry White descamba em funk maroto, em que teclados de elevador à Roy Ayers acabam em jazz de desenhos animados, em que um beat janado pode desaguar num num refrão cuja densidade de pop nada deve ao topo das tabelas de vendas. Aquele disco em que, quando estamos a habituar-nos a um trecho, surge uma guinada numa direcção inesperada.

Drunk é relaxado e lúdico, indiferente às regras mas sem aquela presunção de quem está a querer inventar um jogo novo. Esse é um detalhe importante: uma das marcas de Kamasi, de Bruner, é serem despretensiosos. Inventivos, sim, mas sem aplicarem a esta característica a carga dramática que ela outrora comportava. O jazz é a raiz mas é coisa de brincar, não um livro sagrado que é preciso replicar.

Drunk é um disco diferente de Apocalypse, de 2013, marcado pela morte do teclista Austin Peralta, que faleceu após uma noite de copos com Bruner (a morte foi causada por dificuldades respiratórias, uma azarada mistura de demasiada exposição ao frio, ingestão de álcool e benzodiazepinas).

Peralta estivera presente nas gravações de Golden Age of Apocalypse, o primeiro disco a solo de Thundercat e era parte da sua pandilha, um irmão. A sua morte deixou-o, diz, “à procura do sentido disto tudo”. E talvez Drunk, que aparentemente é um disco sem direcção certa, que vai para todo o lado ao mesmo tempo, seja a resposta reacção a esse momento: celebra-se o simples facto de estarmos vivos sem dar demasiado importância à homogeneidade.

Ali a meio de Friendzone, cantiga sobre o dilema de nos tornamos amigos de alguém com que apreciaríamos empernar, canta-se “Bitch, don't kill my vibe”. Para quem não conhece a frase, é o nome do single mais conhecido do mano Lamar; citá-lo é forma de dizer que esta música tem um lado pop , uma forma de Bruner dizer que não está sozinho, que traz consigo uma multidão, que não está a inventar nada, está só a brincar ao jazz com os amigos. Tem uma vibe danada, Thundercat – não a quilhem, alimentem-se dela.

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