O homicídio brutal de Hazel foi praticamente esquecido – até ter inspirado Twin Peaks

Mark Frost inspirou-se no caso da adolescente morta em 1908 para trabalhar com David Lynch no que seria a icónica série encetada em 1990.

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A comunidade com um resort de luxo de Sand Lake, no norte do estado de Nova Iorque, registava um calor de 32ºC pelo terceiro dia consecutivo a 7 de Julho de 1908, quando Hazel Irene Drew, de 18 anos, percorria a pé uma secção remota da Taborton Road. Rodeado de floresta, este caminho perto do Lago de Teal era popular entre caçadores de esquilos, campistas e pescadores à procura de iscos – mas era arriscado uma jovem como Hazel andar sozinha à noite.

Tudo indica que ela era uma mulher atraente, com cabelo louro com uma poupa e olhos azuis. Pelas 17h30, aproximadamente, ela encontrou dois homens: Frank Smith – um trabalhador rural adolescente com fama de ser “burro” que se tinha encontrado com ela algumas vezes e que estaria apaixonado por ela – e Rudolph Gundrum, de 35 anos – um vendedor ambulante de carvão que conduzia a sua carroça na direcção da cidade quando Frank lhe pedira boleia. Com a mão enluvada, Hazel abanou levemente o seu chapéu de palha debruado a preto, decorado com três plumas grandes e um crachá com um monograma da letra H. Hazel e Frank trocaram cumprimentos. Enquanto a carroça seguia o seu caminho, Smith virou-se para Gundrum e disse: “Aquela é a filha mais velha do velho Drew.”

Este foi o último avistamento confirmado de Hazel Drew antes de o seu cadáver inchado e sem vida ter sido encontrado a flutuar de barriga para baixo no Lago de Teal, quatro dias depois. Causa da morte: um golpe na parte de trás da cabeça, o crânio esmagado com uma arma incisiva e desconhecida. A água tinha distorcido as feições de Hazel de tal maneira que era impossível reconhecê-la e só pode ser identificada pela roupa e pelas obturações de ouro nos dentes. As provas apontavam de forma contundente para um homicídio.

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Hazel Irene Drew, assassinada em 1908 Cortesia de Bob Moore/Historiador de Sand Lake

Actualmente, o mistério sobre quem matou Hazel e porquê continua por resolver. Apesar de na altura o caso ter atraído a cobertura da imprensa todos os Estados Unidos durante semanas – incluindo uma cobertura extensa no Washington Post –, provavelmente hoje em dia Hazel e a sua história teriam sido esquecidas há muito, se não fosse uma coisa: o homicídio aconteceu nas proximidades de Taborton, Nova Iorque, onde o futuro co-criador de Twin Peaks, Mark Frost, passava as férias de Verão quando era jovem.

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Um clipping do The Washington Post sobre o caso de Hazel Drew The Washington Post

A avó materna de Frost, Betty Calhoun, tecia histórias derivadas da sabedoria popular local, incluindo o homicídio de Hazel, representando-o “como uma espécie de história de terror que servia de aviso: não andes sozinho nos bosques à noite”, como recordou Frost numa entrevista recente. Frost herdou o dom da avó para contar histórias, tornando-se um romancista, argumentista e autor televisivo de sucesso que co-criou, com David Lynch, a série da ABC da década de 1990 – que agora regressa com novos episódios a 21 de Maio, no canal Showtime, (e em Portugal no TV Séries, a partir deste domingo, 28, às 22h) 26 anos depois de ter sido cancelada. A avó de Frost nunca teria imaginado que as suas histórias de terror exageradas viriam a ajudar a lançar um dos maiores fenómenos da história da televisão.

Frost e Lynch estavam a trocar ideias para histórias num café de Los Angeles quando invocaram a imagem do corpo sem vida de uma jovem a aparecer na margem solitária do lago de uma terra pequena. Lynch, como se pode depreender da sua filmografia, era obcecado com mulheres jovens, perturbadas e vulneráveis, especialmente loiras. (Antes, ele e Frost tinham trabalhado num biopic ficcionado sobre Marilyn Monroe, que sugeria que os Kennedy estavam envolvidos na sua morte).

Quanto a Frost, “tinha ouvido histórias sobre (Hazel) durante toda a minha infância, porque, supostamente, ela assombrava esta zona do lago”, disse ele num reencontro de Twin Peaks em 2013, na Universidade da Califórnia do Sul. “Foi mais ou menos daí que veio Laura.”

Referia-se a Laura Palmer (interpretada por Sheryl Lee), cujo homicídio está no centro da série original e, segundo Lynch, vai voltar a ser um tema central quando o programa regressar.

Durante o desenvolvimento da série, Frost começou a fazer pesquisa na câmara municipal de Sand Lake, à procura de pormenores sobre o homicídio. “Foi a noção de o corpo da rapariga ser encontrado à beira da água, o mistério que ficou por resolver, os vários suspeitos e a espécie de pessoas de classes sociais diferentes e transculturais com que ela interagia”, diz ele. “Isso despertou muito a minha imaginação.”

Laura, uma rainha do baile de finalistas de 17 anos, e Hazel, que trabalhava como empregada doméstica desde os 14, eram ambas beldades de uma terra pequena cujos homicídios revelaram uma abundância de segredos pessoais. À primeira vista, Laura tinha uma vida tranquila e exemplar: boa aluna, namorada fiel do quarterback da equipa de futebol americano do liceu, voluntária da associação Meals on Wheels, etc. Mas, à medida que a investigação avançava, foram emergindo amantes secretos e relações sórdidas, fascinando o Agente Especial do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) e também os telespectadores.

Do mesmo modo, os amigos e a família de Hazel começaram por insistir que ela não tinha um interesse amoroso em especial. No entanto, os primeiros indícios não davam em nada mas os investigadores desenterraram depois numerosas pistas que sugeriam relacionamentos e encontros clandestinos. Tal como o Agente Cooper recolheu informação crucial nas páginas do diário de Laura Palmer em Twin Peaks, as autoridades do condado de Rensselaer – dirigidas pelo Procurador Distrital Jarvis P. O’Brien – descobriram dúzias de postais e cartas trocadas entre Hazel e os seus conhecidos – identificados apenas pelas iniciais – guardados no baú de Hazel.

A narrativa de Twin Peaks, em momentos diferentes, apontou o dedo da culpa ao motoqueiro sensível James Hurley, ao traficante de droga local Leo Johnson e ao construtor de imobiliário duvidoso Benjamin Horne. Os investigadores do caso de Hazel, sob a pressão crescente do público e da imprensa nacional, descobriam novos suspeitos aparentemente todos os dias.

Frank Smith, o trabalhador rural que se cruzou com Hazel pouco antes da morte dela, foi um dos primeiros alvos. Além do seu afecto pela falecida, ele contou repetidamente relatos contraditórios às autoridades. Quando os alibis que o corroboravam pareceram provar a sua inocência, seguiu-se uma série de suspeitos excêntricos, a começar pelo tio rude e melancólico de Hazel, William Taylor, cuja quinta ficava a menos de uma milha do Lago de Teal. Apesar de os seguidores do caso acharem que Taylor era estranho e suspeito, as autoridades nunca conseguiram descobrir provas directas que o relacionavam com o homicídio e ele acabou por ser ilibado.

Outras personagens irascíveis viriam a saltar por momentos para a linha da frente da investigação enquanto suspeitos – incluindo um dentista que tinha pedido Hazel em casamento, um maquinista de comboios com quem ela teria um relacionamento e um milionário de Albany, Henry Kramroth, que geria um resort nas proximidades onde se dizia que se passavam acontecimentos estranhos que envolviam orgias (semelhante a Ben Horne e o seu bordel-casino One Eyed Jacks de Twin Peaks). Kramroth defendeu-se de alegações de que havia mulheres detidas contra a sua vontade no resort e de que os vizinhos tinham ouvido gritos vindos do campo perto da hora do homicídio.

Como conclui Frost, “Parecia uma investigação realizada à pressa e como ela não era de uma família prominente (acho que é justo dizê-lo) e porque havia pouca compaixão por mulheres vítimas como ela naquela altura, ela pode ter sido negligenciada.”

Mas, ao certo, que influência directa teve o caso de Hazel em Twin Peaks? Frost insiste que a sua pesquisa nunca foi tão aprofundada quanto isso. Contudo, reconhece que as suas impressões gerais da zona tiveram um papel crucial na forma como conceptualizou o cenário.

“Toda a vida vivi em cidades grandes ou nos subúrbios”, recorda Frost. “Cresci a ouvir falar de pessoas das montanhas que eram fora do vulgar, que por vezes eram um pouco excêntricas. Portanto, acho que todas estas histórias tiveram um impacto na maneira como penso em pessoas assim e, sem dúvida, lembro-me de pensar, 'Sim, isto é um bocado como o tipo que vivia perto da fábrica' ou 'Este é um dos eremitas de que eu ouvia falar'.”

Sand Lake é, em muitos aspectos, uma cópia da sua homóloga fictícia do Noroeste Pacífico, situada no nordeste dos EUA. Localizada nas encostas da Montanha Taborton, a cerca de 16 km a leste de Albany, tem 10.135 habitantes (mais perto dos 5 mil que Lynch e Frost tinham inicialmente imaginado para Twin Peaks, antes de a ABC ter insistido que a placa icónica “Welcome to Twin Peaks” ampliasse este número para 51.201 – a estação acreditava, por alguma razão, que um número reduzido de habitantes não ia interessar aos telespectadores). Tal como Twin Peaks, a história de Sand Lake está ligada aos recursos naturais abundantes da região. O historiador de Sand Lake Bob Morore refere, sobre Twin Peaks: “A indústria de madeira, o Grand Northern Hotel e os campos de caça isolados parecem estranhamente relacionados com a Sand Lake do final do século XIX e início do século XX.”

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David Lynch e Miguel Ferrer na nova Twin Peaks Suzanne Tenner/Showtime

O manto omnipresente de árvores que cobre a vila abafa a paisagem, não dispensando quase nenhum espaço para as estradas, os edifícios e as pessoas que vivem as suas vidas. Apesar de não existirem abetos de Douglas – pelos quais o Agente Dale Cooper tinha uma famosa obsessão – a variedade de elmos, carvalhos e áceres do norte do Estado de Nova Iorque evoca sem dúvida as imagens icónicas de ramos fustigados pelo vento que dominavam Twin Peaks. As montanhas e o clima geralmente cinzento e chuvoso dão à vila fictícia e à sua homóloga da vida real uma atmosfera generalizada de intriga perigosa. Como recorda Scott Frost – irmão de Mark, que também foi argumentista da série original – sobre a região, “É o tipo de lugar que permite a uma criança ter um sentido de imaginação espantoso.”

Infelizmente, os paralelos entre Hazel Drew e Laura Palmer têm limites. Como é bem conhecido, Frost e Lynch não conseguiram rejeitar a pressão da estação para revelar quem era o assassino de Laura (não há spoilers neste texto), mas não havia executivos metediços da ABC para obrigar a história de Hazel a ter uma resolução. Em vez disso, semanas de investigação culminaram num grande inquérito onde foram reunidas testemunhas para obter depoimentos definitivos. Infelizmente,  surgiram poucas informações novas e o caso terminou abruptamente.

“Um sábio disse-me uma vez que o mistério é o ingrediente mais essencial da vida, pela seguinte razão: o mistério cria fascínio, que leva à curiosidade, que, por sua vez, gera os fundamentos do nosso desejo de compreender quem somos e o que somos verdadeiramente”, escreveu Frost no seu romance de 2016, The Secret History of Twin Peaks. A solução do homicídio de Hazel pode escapar-nos para sempre, mas é o nosso desejo de respostas que torna a história dela – e a história de Laura Palmer – tão sedutora.

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David Bushman é curador televisivo do Paley Center for Media em Nova Iorque e co-autor do livro de 2016 Twin Peaks FAQ e do futuro Buffy the Vampire Slayer FAQ. Mark Givens apresenta um podcast mensal sobre Twin Peaks chamado Deer Meadow Radio. Actualmente, estão a trabalhar num livro sobre o homicídio de Hazel Drew.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

Tradução: Rita Monteiro

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