Uma capa é sempre uma falha

Estudou e tocou piano profissionalmente até perceber que não ia conseguir ganhar a vida como músico. Doze anos depois, continua a tocar, mas Peter Mendelsund tornou-se reconhecido como director gráfico da Alfred A. Knopf que publica Sebald, Kafka, Martin Amis ou Jonathan Franzen.

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Peter Mendelsund diz que faz capas de livros porque falhou como músico. “Acho que se tivesse tido sucesso provavelmente continuaria a tocar piano. Eu costumava tocar piano”, diz o autor de quase mil capas de livros em mais de doze anos de trabalho para a chancela Alfred A. Knopf, editora do grupo Penguin Random House. A conversa acontece na sua sala de trabalho, num andar alto do edifício no número 1745 da Broadway, em Nova Iorque — sede do grupo nos EUA — menos de duas horas depois de se saber da morte de Prince. Além da consternação geral que a notícia provocou há uma interrogação difícil de pronunciar e que diz respeito àquela casa com qual o músico assinara semanas antes um contrato para a publicação das suas memórias. Estarão escritas? Serão escritas? Não é assunto que faça parte das funções de Peter Mendelsund enquanto director de arte da Knopf. Desde que desistiu do piano como instrumento de trabalho, continua a tocar diariamente e a admirar o génio de Glenn Gould, mas o seu trabalho é ler livros e pensar em como sintetizá-los numa imagem que lhes faça justiça. É assim que se descreve profissionalmente, como “um leitor que tenta interpretar o que lê o melhor possível”. 

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Peter Mendelsund é autor de quase mil capas de livros em mais de doze anos de trabalho para a chancela Alfred A. Knopf, editora do grupo Penguin Random House

É uma referência na edição e o que faz rapidamente passa a ser modelo a seguir por designers em todo o mundo. “Veste”, como gosta de dizer, a escrita saída da cabeça e das mãos de gente como Julio Cortazar, Franz Kafka, Sebald, James Salter, Thomas Bernhard, o português Antonio Damásio, Martin Amis, Tom McCarthy ou Camille Paglia. Essa escrita é visualmente traduzida por Mendelsund num processo que descreve como derrotado à partida. “Sempre soube que ficaria insatisfeito com qualquer capa que pudesse desenhar para a obra de arte jazzy, melancólica, metaficcional que é Hopscotch [título em inglês de Rayuela], de Julio Cortazar”, escreve em Cover, uma monografia do seu trabalho publicada em 2014 — em simultâneo com O Que Vemos Quando Lemos (Elsinore, 2015), onde fala e desenha sobre a sua experiência como leitor. Ainda em Cover, sobre essa ideia do falhanço à partida que é qualquer capa, explica: “Cada escolha de cor, cada decisão tipográfica, cada divisão de espaço e cada enxerto pictórico — cada passo é um passo para a concretização de um livro e portanto para o seu empobrecimento. A minha função é arrastar o texto, o trabalho do autor, perfeito na sua desencarnação, para uma especificidade horrível. A um ponto tal que, não importa o quão bem tenha feito o meu trabalho — não importa como a capa possa estar bonita — tenho sempre um sentimento de perda”.

“É verdade”, refere agora, óculos pousados sobre a folha branca que parece conter a intensidade filtrada da luz de início de tarde. É ali que trabalha. “Tenho um emprego”, sorri, depois de se lhe perguntar se o estatuto lhe permite escolher os livros “que lê”. “Trabalho aqui na Knopf, mas também faço trabalho de freelance para outras editoras e sou muitas vezes chamado para trabalhar em coisas que me pareçam interessantes. Nesse caso, se não forem não as faço. Mas aqui faço o que tenho de fazer e não há escolha. Muitas vezes trabalho em coisas em conjunto com o autor. É como ser jornalista. Dão-nos uma história e algumas revemo-nos nela, noutras não, mas damos o nosso melhor. Sei que isto pode parecer estranho, mas leio muito lixo. Histórias de amor que se escrevem depressa e mal, e se lêem num instante; mistério, fantasia, terror, crime, ficção científica barata, mas também grandes versões de todos esses géneros, e grande literatura e crítica. Há sempre alguma coisa para gostar num livro. A excepção é quando encontro alguma coisa que politicamente ou eticamente me repugna. Aí digo não, que não posso ter qualquer tipo de intervenção no sentido de ajudar a que aquilo saia para o mundo.”

Está rodeado de livros que marcam a evolução do que tem feito. O que se vê ali reconhece-se das livrarias, das páginas de suplementos literários. É o que tem feito desde o dia em que se candidatou a um emprego que achou que não ia conseguir manter por mais de um mês. Uma decisão vinda da necessidade e de uma reunião com a mulher que começou com uma lista, a de coisas que era capaz de fazer além de tocar piano. Jogar à bola, escrever, ler, desenhar. Conta que tinha desenhado os convites para o seu casamento e gostou. Decidiu aprender mais. Investiu tempo nisso, menos do que no piano, e chegou à Knopf onde lhe foi pedido para fazer a capa de Chopin’s Funeral, livro de Benita Eisler. Seria a primeira das suas capas. “O desenho de capas não é uma coisa estanque. Estou sempre à procura de alguma coisa que nunca tenha sido feita”, adianta, como se essa ausência fosse também literária, como os silêncios por preencher de um romance. É preciso encontrar a imagem, como a palavra, ou então deixar em branco num exercício que convoca e desafia a liberdade o leitor. À frente tem um livro de W. G. Sebald. Está a escrever um artigo sobre a sua relação com a escrita do autor de Os Emigrantes para a Harper’s Magazine, sobre como foi lê-lo e construir uma capa que reflectisse essa experiência. 

“Quando eu era pianista e tocar piano não me pagava as contas, eu trabalhava numa livraria que agora já não existe. A Susan Sontag costumava ir lá muito. Ela era uma grande entusiasta de Sebald e estava sempre a dizer-nos que o tínhamos de ler. E eu li Os Emigrantes. Foi o primeiro. É muito difícil explicar a alguém que nunca tenha lido Sebald porque é que ele é tão extraordinário e lê-lo é uma experiência tão especial. Não há muita coisa a acontecer, ele anda às voltas, tudo está relacionado com refugiados da II Grande Guerra; há muita tragédia, mas ele nunca fala disso directamente, e há muita obsessão, como se cada livro fosse o mesmo, e sempre de uma forma interessante. E os seus livros, de alguma forma, representam-nos, a nós, através de um imaginário visual.” Vestir um livro de Sebald não é, por isso, como vestir a maioria dos livros. “Há neles fotografias, e há qualquer coisa sobre a forma como essas fotografias actuam no leitor de Sebald. Elas desestabilizam-nos; estamos a ler e constantemente a questionar-nos se estamos perante ficção ou não ficção, sobre o que é aquilo. As fotos são reais, mas não reais no modo como ele escolhe posicioná-las no livro; ele torna-as ficcionais em toda a ideia de que as imagens representam coisas, no sentido em que as mapeiam, e tudo se torna muito confuso. Gosto muito disso nele. Lemos o livro e temos uma espécie de noção do que ele está a tentar atravessar. E talvez seja uma imagem ou talvez não; pode ser linguagem pura, mas eu, numa capa, tenho de dizer isso de forma límpida, dizer como é que isso se parece. A minha questão é: como posso tornar isso visualmente reconhecível para outra pessoa?”

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O tradutor

O trabalho de Peter Mendelsund é também por tudo isto um trabalho de tradução. De uma linguagem para outra. De um modo extenso para outro simbólico, metafórico. “Passar a palavra para a imagem também é isso”, continua. “Na leitura surge uma imagem, uma espécie de momento epifânico em que vemos o que o livro é, depois é preciso fazer essa tradução activa.” É o momento da execução ao longo do quando, no entanto, permanece sem resposta para a pergunta que formulou, sem ponto de interrogação, no título do livro O Que Vemos Quando Lemos. É um exercício sobre a fenomenologia da leitura. Há pouco mais de dois anos recebi um e-mail a perguntar-me se eu estaria interessado em fazer uma monografia do meu trabalho de designer. Aceitei e deram-me oito ou nove meses para o fazer. Tinha de recolher imagens e escrever dois ensaios. Não era complicado, e nasceu Cover. Mas quando terminei fiquei muito aflito. Porque é que alguém haveria de estar interessado neste livro? Além disso achei que representava apenas um lado do que eu fazia. Não me representava enquanto leitor e ocorreu-me que se pudesse representar o meu lado de leitor isso ajudaria o outro livro a vender e vice-versa. Recuperei então um pequeno post que tinha no meu blogue sobre uma conversa o com um amigo acerca de ler e imaginar e pensei que podia transformar aquilo em alguma coisa. Consegui vender a ideia e tive sete meses para a escrever. Dessa vez era muito pouco. Nesse livros não há muitas palavras, mas o resultado da elaboração de um pensamento. O meu acerca do que a leitura me suscita”. 

A descrição de um rosto, de uma paisagem; o desenrolar de um enredo. O modo como isso gera imagens a a ilusão de que gera imagens. Vemos quando lemos? O que? Não será que apenas imaginemos que vemos quando lemos? “Tudo isto é muito confuso. Os neurocientistas tentam explicar, e os filósofos da cognição. Ler sem imagens é possível? É muito complicado falar disso. Podemos simplesmente dizer que vemos imagens nas nossas mentes e alguém pode facilmente dizer que talvez apenas imaginemos imaginar imagens e chegamos a um ponto em que já nada perece definido. Enquanto leitor já estive próximo de um sentimento de experimentar apenas significado em vez de imagens”, diz sobre o desafio que é a sua pergunta-resposta no título do livro onde expõe a sua intimidade enquanto leitor. “Sim, tudo o que se passa no processo de leitura é muito íntimo”, concede, acrescentando: “Não há uma experiência de leitura igual, e muitas vezes o modo como a tentamos comunicar passa por clichés. Isso, como designer assusta-me. Não quero cair no cliché, na repetição de fórmulas fáceis para comunicar um livro. Nem aqueles escritos para serem best-sellers.”

Estamos sempre na leitura. É aí a génese do trabalho de um desenhador de capas que nunca é, no entanto, o primeiro leitor de um livro, mas que, como afirmou o escritor Tom McCarthy justamente sobre o trabalho do criador de capas, é o “mais radical” e um dos fundamentais. “Os designers de capas lêem livros da mesma forma que os adivinhos lêem folhas de plantas ou entranhas”, escreve o romancista inglês na introdução de Cover, acrescentando que “são como fenomenologistas, envolvidos no acto de desenhar de forma lírica e penetrante, de fazer manifestos”.

Como passar um rosto de um clássico? “Nunca o representado tal como vem descrito”, responde, sabendo que o que ele vê numa descrição não é o que outro leitor vê. Por isso escreve em O que Vemos Quando Lemos: “…qual é a aparência de Anna Karénina? É possível sentir que conhece intimamente uma personagem (as pessoas gostam de dizer, em relação a uma personagem muito bem descrita, ‘é como se a conhecesse’) sem que isso signifique que está de facto a visualizar uma pessoa. Nada tão firme; nada tão total.” É por isso que a capa falha sempre, como referiu dando o exemplo de Rayuela? “A função da capa é vender o livro e representá-lo de forma adequada. Não há uma fórmula para o fazer. A criatividade está nisso”, começa por responder com a rapidez de quem já teve tantas vezes de pensar e responder a uma pergunta semelhante, mas sem manifestar enfado, tentando novos exemplos, indo buscar estímulos. “Adoro Kafka e toda a obra dele na América tem capas horríveis. Não sei porquê. Percebi que os Aforismos dele não estavam reunidos numa edição aqui e propus isso, que o fizessem, desenharia uma capa.” O sucesso do pequeno livro — cuja capa se inspira no abstraccionismo que marcou o trabalho de outro director gráfico Alvin Lustig, famoso designer de capas das décadas de 40 e 50 — levou a Knopf a reeditar a obra do autor checo com todas as capas da autoria de Mendelsund. Elas estão e destaque na sala da Broadway como imagem de marca. Da casa e do designer. “Fico sempre surpreendido com o facto de uma ideia minha ter adesão. Porque nasce dessa coisa íntima”, salienta, “nasce de uma busca constante, pessoal, e nisso lembro sempre as palavras de Cortazar que cito em Cover.” São mais ou menos assim: “Percebi que a procura era o meu símbolo, o emblema daqueles que saem à noite sem nada na cabeça, a motivação de um destruidor de bússolas.” Quando uma fórmula é bem sucedida torna-se enfadonha e passa-se outra vez ao desconhecido, ao silêncio da literatura. 

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