O género não é um estilo

Ainda é urgente falar na questão do género num contexto cultural, social e político altamente dominado por lógicas machistas, misóginas e homofóbicas.

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João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre (2017)

A nova exposição no Museu do Chiado é oportuna em todos os sentidos. Não só porque ainda é urgente falar na questão do género num contexto cultural, social e político altamente dominado por lógicas machistas, misóginas e homofóbicas, mas também porque a construção da identidade de género tem na arte um elemento importante. Finalmente, porque as lógicas de circulação, visibilidade e a criação de valor da produção artística contemporânea estão longe de constituírem práticas igualitárias.

Não que esta exposição se assuma com algum tipo de activismo, mas dá a ver, através de um importante núcleo de obras de artistas portugueses relevantes, como no contexto da recente arte portuguesa os artistas lidam com a identidade de género. Pode dizer-se estar em causa uma espécie de tentativa de detectar como é que a expressão artística, tal como materializada numa obra, pode ser expressão sobre o facto de ser gay, lésbica, mulher, transexual ou outro. E mostrar como essa expressão integra ou não o cânone artístico corrente tal como exercido no circuitos artísticos, culturais e sociais.

Uma das percepções mais imediatas é a de que a construção de género não é uma estética e este é o ponto mais fértil e importante. Ou seja, não se trata da construção de um estilo mas de uma certa consciência, sensibilidade, presença, existência e, claro, de uma política que as obras de arte incorporam. E fazem-no, nos seus bons casos, não através de um sistema literal de referências ou através do uso ilustrativo de afirmações correctas acerca da identidade de género, mas sim através da capacidade de articular uma certa consciência de si. Consciência esta que não faz das obras lugares biográficos ou confessionais, mas acontecimento público feito através da afirmação da identidade de si, do outro e da comunidade.

É importante sublinhar a questão de que em arte a identidade de género, como quer que seja entendida, não é um estilo evitando assim as tão típicas confusões que tendem a fixar a relação arte-género numa espécie de cristalização de um estilo e a confundi-lo com feminismo ou com o tão famoso estilo camp, entre muitos epítetos que poderíamos encontrar. E neste ponto a exposição é um sucesso porque a escolha de obras não obedece a nenhum princípio formal e a visita a é verdadeiramente, do ponto de vista das linguagens e estilos artísticos, uma experiência eclética. Entre a performance, fotografia e esculturas de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, a instalação de Vasco Araújo, as pinturas de João Gabriel, os retratos de Ana Pérez-Quiroga, as mulheres de Carla Cruz, as palavras de Horácio Frutuoso ou os objectos de Ana Vidigal não encontramos qualquer tipo de relação formal, material ou conceptual. São artistas tomados por questões artísticas e é nesse contexto que se materializa uma certa consciência de identidade. Esta materialização é, a todos os níveis, uma acção política. E é-o porque o modo como articula as esferas público e privado é criador de factos políticos relevantes: tornar visível é tornar consciente e actuante expressões — que são existências — não consideradas, e muitas vezes reprimidas e violentamente caladas, pelas lógicas dominantes da nossa sociedade.

Se esta exposição é muito relevante nas suas premissas, ela falha porque não consegue responder eficazmente à pergunta: porque é que ainda importa falar de género na arte? E falha porque não cria nenhum tipo de enquadramento histórico, sociológico, artístico ou institucional para as obras que apresenta. Os artistas escolhidos ou reflectem de um modo muito literal a ideia do género estar relacionado com a identidade, o corpo, a sexualidade e ser uma modalidade de resistência, ou fazem-no de forma tão subtil que se torna imperceptível. E, neste sentido, a exposição é previsível e literal não tirando partido de uma leitura mais profunda do modo como a identidade é construída entre os planos públicos e privados.

Falha também porque não promove nenhum tipo de reflexão sobre o modo como os museus, tal como aquele em que a exposição acontece, não serem lugares neutros e, por isso, ser fundamental questionar a própria instituição MUSEU e os seus protocolos de exibição, divulgação e valorização de determinadas práticas e estéticas artísticas. É certo que na sua declaração as curadoras afirmam saber que os museus não são lugares neutros, mas nada fazem para combater esse estado de coisas: e a simples realização da exposição é insuficiente para construir um facto político e artístico relevante.

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