O flamenco pessoal de Rosalía é cru, primário e magnífico

Celebrada como revolucionária do flamenco, é, aos 23 anos, uma das mais fulgurantes revelações da música espanhola dos últimos tempos. Lós Angeles, soberbo disco de estreia gravado com Raül Refree, trá-la a Portugal pela primeira vez, ao Theatro Circo, em Braga.

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A imprensa espanhola, rendida ao seu aparecimento fulgurante este ano com Los Ángeles, etiquetou-a como uma “revolucionária do flamenco” Mário Lopes Pereira

Foi num concerto de homenagem à cantaora e baillaora Maruja Garrido, organizado pelo jornalista musical Luis Troquel no barcelonês Mercat de les Flors, que Raül Fernández Miró viu e ouviu pela primeira vez Rosalía. Mal chegada aos 20 anos, há algum tempo que Rosalía Vila se vinha tornando um fenómeno nos tablaos (locais destinados aos espectáculos de flamenco) catalães, cantando com um fogo na voz e no corpo que começavam a atrair rapidamente atenções e a transpirar para fora do pequeno circuito da região. Raül Miró, cujo nome artístico traz atrelada a alcunha “Refree”, um dos mais reputados produtores da cena alternativa espanhola, já se havia envolvido com o flamenco de Rocío Márquez, além das mais notadas colaborações com Lee Ranaldo, a rapper La Mala Rodríguez e, em especial, com Sílvia Pérez Cruz. Mas logo percebeu que havia algo de muito singular naquela entrega vulcânica de Rosalía.

Troquel, investido de um espírito casamenteiro, apresentou-os passadas algumas semanas e, talvez por receio de estragarem tudo ou por mera cautela e sedução mútua, os dois foram criando uma cumplicidade musical através de várias sessões de audição, em que partilhavam gostos e descobertas, mas não se atreviam a colocar a voz e a guitarra pelo meio. Pode dizer-se que, lentamente, foram criando um clima. Sem pressas, para não tornar demasiado precoce e vulgar a vontade crescente de arriscarem um tema.

Embora o interesse pelo flamenco e pela música negra fosse então aquilo que mais os aproximava e apaixonava em cada uma das sessões, ouvindo e discutindo Kendrick Lamar, Kanye West, Niña de los Peines ou Lole y Manuel com o mesmo entusiasmo, quando finalmente se lançaram a tocar uma canção juntos escolheram I see a darkenss, de Bonnie “Prince” Billy, possivelmente porque estava longe o suficiente daquilo que andavam a cozinhar para que não houvesse qualquer indício de compromisso envolvido. “Recordo-me de que gostávamos ambos da música e eu acabei por lhe propor que a tocássemos”, conta Rosalía ao Ípsilon no Pabellón Mies van der Rohe, em Barcelona, semana e meia antes de se estrear em palcos portugueses esta sexta-feira, no Theatro Circo, em Braga. “Ele foi para o piano, improvisou um pouco os acordes, começámos a tocar e foi tudo muito fluido. Quando terminámos, ficámos os dois calados durante um bocado. E creio que em seguida fui para casa.”

Tornou-se mais ou menos evidente a partir desse momento que os dois teriam de construir alguma coisa sólida em conjunto. O silêncio era sinal de que a música preenchia tudo, estava para além do que pudesse ser discutido e era de tal forma assertiva que dispensava quaisquer argumentos adicionais. “O Raül é como uma liberdade, sempre, uma liberdade a que também estou ligada, porque também sinto a música assim”, explica a cantora. E Refree é uma liberdade porque não é um típico guitarrista de acompanhamento do cante jondo, acerca-se do flamenco a partir de um lugar assumidamente impuro, carregado de um travo sul-americano e de uma rudeza rockeira, revelando-se a escolha perfeita para uma estreia de Rosalía que poderia muito bem fechá-la na tradição flamenca mas que amplia muitíssimo o seu raio de acção.

Tanto assim que a imprensa espanhola, rendida ao seu aparecimento fulgurante este ano com a edição de Los Ángeles, a etiquetou como uma “revolucionária do flamenco”. Não é um epíteto a que a cantora dê especial importância. Prefere até afirmar a sua independência total em relação às opiniões – “e há muitas, que tanto podem dizer isso como o seu contrário”, desvaloriza com uma segurança pouco sintonizada com os seus 23 anos –, atribuindo aquilo que há de distinto no seu canto à sua queda de pára-quedas no meio. “Não sou uma cantaora no sentido clássico da palavra, porque não venho de uma família de dinastia flamenca, nem sequer se ouvia flamenco em minha casa e, por consequência, aquilo que faço é inevitavelmente diferente. E permito-me também fazer colaborações que uma cantaora clássica nunca se permitiria, quero ter a liberdade de poder fazer tudo quanto me faça crescer como música.”

Essa liberdade e essa disponibilidade de pisar terrenos dificilmente calcorreados por uma cantaora tradicional encontram-se tanto na sua colaboração com o rapper C. Tangana como no tema final de Los Ángeles, a versão de I see a darkness que abriu as comportas para o jorrar do “mano a mano” que definiu o seu trabalho com Raül, e que encontramos em disco numa interpretação devastadoramente bela, de deixar o corpo suspenso em cada arrepiante sílaba.

Nascer com a morte na boca

O flamenco era algo longínquo na vida de Rosalía quando, aos 13 anos, ao sair das aulas e se juntar a alguns amigos para uma tarde passada num parque da cidade, foi surpreendida por esse modo hoje tão popular de ouvir música que consiste em escancarar as portas de um automóvel e deixar que a música se faça escutar num volume considerável. Acontece que alguns dos seus amigos, naturalmente mais velhos, abasteciam os estudantes de flamenco nestas deambulações pós-escolares. Foi então que Rosalía teve a sua epifania pessoal. “Quando ouvi Camarón, ouvi a voz mais bela e mais verdadeira que alguma vez tinha escutado na minha vida”, recorda. “Pareceu-me que essa música – que descobri graças a Camarón – era algo que nunca tinha ouvido, mas que me era muito familiar.”

Não é exagero dizer que a vida de Rosalía tomou um rumo diferente a partir desse dia. Nesse mesmo momento, em que a voz de Camarón a invadia, decidiu que aquela seria a sua linguagem e mergulhou de imediato numa cuidada e obsessiva investigação de todas as gravações e todos os artistas de flamenco a que conseguiu deitar a mão. O passo seguinte recorda-o como a notificação da família que queria aprender e estudar por sua conta, “começar a ir a aulas com maestros flamencos, estudar todo o tipo de música, técnica lírica e muito flamenco”, uma vez que identifica no género as fundações para a música queria fazer. Depois foi uma questão de ahondar, de aprofundar os estudos, licenciar-se em interpretação de flamenco para “estudar todos os cantes em detalhe”.

Los Ángeles, apesar de conter uma riqueza e abrangência musicais muito mais vastas do que o flamenco, nasce em consequência directa desse estudo – que, na verdade, Rosalía escavou ainda mais fundo na preparação do disco. E isto porque, logo no início do percurso com Raül Refree, ficou acordado entre os dois que o álbum deveria levantar-se em torno de uma ideia central. Essa ideia acabaria por tomar a imagem e as palavras da morte, tema que prolifera livremente pelas letras do flamenco e que se tornou o mote para a exaustiva investigação posterior que a cantora levou a cabo, durante dois anos, “escutando muito flamenco, muitos discos, investigando, falando com amigos flamencólogos, pedindo-lhes livros, procurando livros descatalogados, visitando bibliotecas especializadas, viajando para sul, procurando cassetes em segunda mão, na internet”.

Foi desse reportório mais ou menos remoto que veio o alinhamento de Los Ángeles, trabalhado com toda a minúcia e com muito pouca pressa, cujo título tanto alude a um imaginário espiritual de anjos que aguardam as almas para as acolher no céu, quanto aponta para a cidade californiana, essa terra que “pariu artistas como Kendrick Lamar e The Doors”, uma forma subtil de Rosalía também se confesar impura. Porque se há temas mais tangentes ao flamenco como Día 14 de Abril ou Por mi puerta no lo pasen, Catalina mistura coordenadas e aproxima-a da Lhasa de La Llorona; Nos quedamos solitos dá-se ares de ranchera e até de pop; Te venero sugere um fundo medieval ao mesmo tempo que se aproxima do mundo musical de Sílvia Pérez Cruz – Raül gravou Granada em duo com Pérez Cruz, não o esqueçamos; e Si tú supieras compañero quase desliza na sua delicadeza. E tão depressa a voz cresce e soa a um vendaval, quanto raia o silêncio e é toda candura.

Certo é que Rosalía não se nega a ironia paradoxal de cantar a morte num disco que, para todos os efeitos, anuncia a sua chegada e o seu nascimento para um público vasto – por muito que há vários anos cante nos tablaos e a riqueza do seu percurso inclua, por exemplo, uma participação como cantaora no espectáculo A Journey Beyond Time da companhia multidisciplinar catalã La Fura dels Baus, apresentado em Singapura. “Se nos fixarmos no dia-a-dia”, contrapõe, “a morte é algo que está presente a toda a hora e à medida que o tempo avança todos os momentos vão morrendo, estamos sempre a deixar coisas para trás, estamos sempre a construir e a destruir, a morrer e a viver. E, se nos damos conta disso, podemos sentir a morte muito próxima e deixa de ser um tabu.”

Tradição e experimentalismo

Los Ángeles parte de muito material tradicional e de música muito antiga no histórico do flamenco, uma forma que Rosalía encontrou para contrariar a dificuldade de se descobrir nas lojas espanholas qualquer registo que mantenha alguma relação com o passado do género sem deixar de se reclamar uma criação do presente, e para reivindicar a perfeita actualidade destes textos e de um flamenco que é, muitas vezes, olhado como música de museu e presa das suas próprias regras. Para Rosalía, a sua abordagem pessoal – reforçada pelo jeito pouco ortodoxo de Raül abordar cada tema – significa também um combate aos clichés e um compromisso com a sua aposta em “avançar para novos lugares – nem melhores, nem piores, apenas diferentes”.

A prova de que a tradição e o experimentalismo – que é para ela sobretudo “uma postura” – podem conviver sem acidentes dentro de um disco é a construção de Los Ángeles a dois. O som cru e quase selvagem de voz e guitarra é uma herança que ela quis desenterrar das origens do flamenco, quando o género “ainda não estava codificado de todo e era de impulsos, muito visceral”. “Queria reivindicar essa forma primária, imperfeita e brutal de tocar. Hoje, com todas as possibilidades de estúdio, por vezes o flamenco e outras músicas tendem apenas para o bonito. As primeiras gravações de flamenco têm muitas imperfeições, apenas com voz e guitarra porque toda a emoção já está contida na melodia vocal e no ritmo e na harmonia do instrumento. Não faz falta mais nada, não faz falta qualquer artifício.”

Ouvir Rosalía é ter a certeza de que não há mesmo nada mais que aqui faça falta. Olhamos à volta, para o espaço escolhido pela cantora para a entrevista, por se sentir atraída pelo minimalismo e a sensação de recolhimento da arquitectura de Mies van der Rohe, e as peças encaixam-se sem esforço. Cada um dos elementos destaca-se sem esforço. Tal como a voz da catalã clama por um cenário despido para derramar todo o seu encantamento.

O Ípsilon viajou a convite do Theatro Circo e agradece ao Pabellón Mies van der Rohe a cedência do espaço para a sessão fotográfica.

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