O fascínio de Gluck pelos Músicos do Tejo

Espera-se que este trabalho possa ser rentabilizado no futuro num espectáculo mais ambicioso, que contemple também a encenação, elemento essencial para um compositor como Gluck.

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Foto do ensaio Miguel Manso

Apesar de ser uma das mais belas óperas de Christoph W. Gluck (1714-1787), Paride ed Elena é uma obra pouco conhecida do grande público, contando com raras apresentações em Portugal. Como tal, a sua escolha pelos Músicos do Tejo para comemorar o tricentenário do compositor no âmbito da temporada do Centro Cultural de Belém (CCB) foi uma excelente opção, até porque o resultado foi de óptimo nível.

Emblemática da reforma operática de Gluck (no sentido em que a música deveria servir o texto e a continuidade dramática, o que implicava o abandono das acrobacias vocais dos castrati e a integração na acção dos coros e bailados),  a partitura de Paride ed Elena, publicada em 1770, tem a particularidade de ter sido dedicada ao Duque de Lafões, D. João Carlos de Bragança. Este nobre português, que viria a ser sócio fundador da Academia das Ciências de Lisboa, recebeu diversas vezes Gluck nos salões da sua residência em Viena, bem como a figuras tão ilustres como o libretista Pietro Metastasio e o historiador e músico britânico Charles Burney. Todavia, Paride ed Elena nunca terá sido apresentada em Lisboa na época setecentista. Aparentemente, só em 2003 foi estreada em Portugal numa versão de concerto pelos Gabrielli Consort and Players de Paul McCreesh na última temporada dos Concertos Em Órbita/Portugal Telecom, seguindo-se em 2012 uma produção encenada por Clara Andermatt com direcção musical de Pedro Castro pelo Estúdio de Ópera da Escola Superior de Música de Lisboa. Nessa ocasião foi usada uma nova edição da partitura feita por Nicholas McNair, que também serviu de base às interpretações dos Músicos do Tejo no CCB nos dias 28 e 29.

Em tempo de crise, optou-se por uma versão de concerto, o que diminui o impacto da obra, mas as quase três horas de duração passaram rapidamente, já que a música possui uma fascinante inventividade e mesmo as longas secções em recitativo, sempre acompanhado pela orquestra (e não pelo baixo contínuo como sucedia na produção operática da época anterior), foram objecto de um trabalho cuidado da parte dos Músicos do Tejo e tiveram uma prestação vocal atenta às múltiplas nuances do significado do texto e às suas implicações na psicologia das personagens.  

Marcos Magalhães vê em Paride ed Elena traços do pré-romantismo e procurou realçar a variedade de ambientes e de emoções, bem como os efeitos de colorido orquestral, contando com a experiência do violinista Patrick Cohën-Akenine como concertinho e com boas intervenções dos naipes de sopros. Poderia, porém, ter ido mais longe ao nível dos contrastes dinâmicos e dos efeitos de surpresa. No concerto de dia 28, o agrupamento instrumental foi, contudo, ganhando consistência e coesão ao longo da noite, assim como o Coro Voces Caelestes, que teve o melhor da sua intervenção no último acto.

Uma decisão interpretativa interessante foi a substituição da harpa por um bandolim (instrumento em voga nos salões burgueses e aristocráticos da época, incluindo os da corte portuguesa) tocado por José Nunes na ária de Páris Quegli occhi belli, acentuando assim a dimensão de romance de salão e estabelecendo uma estreita cumplicidade com a eloquente interpretação de Susana Gaspar. Esta jovem soprano adaptou-se bastante bem a este universo e fez um Páris de grande poder expressivo ainda que, por vezes, tenham vindo ao de cima aspectos da técnica e da estética do seu repertório mais habitual (o qual inclui papéis da envergadura da Violetta de La Traviata de Verdi ou a Mimi de La Bohème de Puccini). Com um percurso e um perfil vocal mais próximo do mundo estilístico de Gluck, Ana Quintans personificou Elena com primorosa elegância e refinamento e Joana Seara fez uma composição vocal e dramática do papel de Amor plena de graça e brilhantismo. Apesar das diferenças de personalidade e estilo, as três cantoras conseguiram combinações muito equilibradas do ponto de vista tímbrico nas cenas de conjunto. Ana Paula Russo cantou com veemência e o papel de Palas Atenas e Bruno Almeida foi um Troiano convincente na sua curta intervenção.

Contando com sólidas bases artísticas, espera-se que este trabalho possa ser rentabilizado no futuro num espectáculo mais ambicioso, que contemple também a encenação, elemento essencial para um compositor como Gluck, cujos ideais apontam na direcção da ópera como obra de arte total.

 

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