O falecido Albano Jerónimo (que não morreu)

Em Pirandello, a Mala Voadora provoca um constante curto-circuito entre realidade e ficção, dando ao romance de Luigi Pirandello o mesmo tratamento que este deu ao seu próprio teatro. A partir de dia 12, no Teatro Nacional D. Maria II.

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Albano Jerónimo está morto. Só que, na verdade, não é bem o actor que se finou, mas sim a personagem a que dá corpo em Pirandello, baseada em Mattia Pascal.

Mattia Pascal está morto. Só que, na verdade, não é bem esse homem imaginado por Pirandello que se finou, mas sim um pobre desgraçado anónimo cujo rosto desfigurado não permitiu uma identificação certeira. Acontece simplesmente que Mattia Pascal foi dado como morto na sua Ligúria natal depois de ter perdido toda a família (mãe, irmão, tia) e as propriedades herdadas do pai. E após anunciar os seus impulsos suicidas, acaba por desaparecer com um maço de notas que faz crescer ao longo de vários dias enfiado no Casino de Monte Carlo. Por lá fica o tempo suficiente para que, no regresso à terra, assista ao seu próprio funeral – encontrado o tal corpo desfigurado, logo houve quem juntasse dois mais dois, e se Mattia falara em suicídio e desaparecera em seguida, pois a morte só podia ser igual a quatro. Perante tal cenário, em vez de reclamar a sua vida, Mattia (ou melhor, Albano) aceita de bom grado o seu óbito e resolve partir inventando uma nova e libertadora identidade: Giovanni.

As sucessivas camadas de ficção em que a companhia Mala Voadora submerge Pirandello, peça que adapta o romance O Falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello (em cena de 12 de Março, próxima quinta-feira, a 4 de Abril, no D. Maria II, em Lisboa), começam assim que é pedido aos actores que se apresentem não com os nomes das personagens ficcionais mas com os seus nomes próprios. Em vez de Mattia, Albano Jerónimo diz-se Albano. Tal como Custódia Gallego é Custódia e Mónica Garnel se faz tratar por Mónica, etc. A realidade é usada, portanto, para adensar a ficção que se vive em palco – nenhum daqueles actores representa a sua vida, apesar de recusar assumir o nome da personagem que lhe calhou em sorte. “Quisemos utilizar o enredo como mais um mecanismo com que podíamos brincar para ajudar a criar este jogo da ficção dentro da ficção”, explica Jorge Andrade, encenador e um dos directores artísticos da Mala Voadora. “Resolvemos depois juntar os nomes dos actores para tornarmos tudo mais próximo e termos mais um elemento para jogar com o enredo.”

“Toda a gente sabe que o Albano Jerónimo não é filho daquela senhora [Tânia Alves], de maneira que há sempre uma espécie de curto-circuito entre aquilo que é verdadeiro e falso, e que nos interessava explorar ao longo do espectáculo todo”, acrescenta José Capela, cenógrafo e a outra metade da direcção da Mala. Este teste permanente àquilo que pode ser o teatro e o elogio do artifício que reclamam para cada peça são duas das marcas da companhia, e é nesse sentido que a meta-teatralidade de Pirandello parece um fruto demasiado apetecível para ser recusado. Sobretudo quando se oferece assim, como uma matrioska de falsidades. Quando o ex-director do Teatro Nacional D. Maria II, João Mota, os chamou para falarem sobre possíveis projectos a levarem a palco, disse a Jorge Andrade “Vá mas é ler o Pirandello!”. Coisa que o encenador já tinha feito, mesmo que não até ao osso.

Só que Pirandello enquanto autor teatral, dada a lógica subversiva e a maleabilidade com que na Mala Voadora se tratam os materiais, parecia-lhes repentinamente uma ideia demasiado fechada. Foi então que Jorge Andrade se lembrou de O Falecido Mattia Pascal, que lhes permitia fazer ao romance de Pirandello aquilo que o autor italiano fizera com o seu próprio teatro. Roça a provocação: não deixar que um texto escrito de acordo com outras regras escape às ferramentas deflagradoras do meta-teatro que Pirandello brilhantemente desenvolveu. “Sendo Pirandello um autor meta-teatral por excelência”, confirma o encenador, “procurámos aproveitar essa porta que deixa aberta para a sua obra, de forma a levarmos tão longe quanto possível nos dias de hoje o facto de estarmos a fazer o romance dele num palco, com os mecanismos do teatro”.

Laboratório para um autor
A porta aberta passa por Mattia Pascal, aliás Albano Jerónimo, abdicar da sua vida real em favor de uma identidade fictícia que cria fragilmente para Giovanni. Mas quando essa fragilidade é destapada e posta em causa, e este resolve expor a verdade do seu passado, este é tão mirabolante e ‘telenovelesco’ (mortes sucessivas, amores trocados, gravidezes e traições, casamentos de conveniência, uma fortuna ganha ao jogo, a sua própria gente a julgá-lo morto e enterrado) que só pode ser interpretado como uma arquitectura minuciosa nascida da sua fantasia. Giovanni tem ainda um outro problema que não se prende apenas com credibilidade: “Não pode exercer ou exigir os direitos de cidadão porque está à margem de todas as leis”, continua Jorge Andrade. A luta sem descanso de Mattia/Albano é sempre esta: a de tentar viver com uma identidade por si forjada do zero, devendo para isso livrar-se do passado.

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Pirandello mostra-se desde o início como um torvelinho de ficções e mentiras, justificando o nome do autor no título da peça pela liberdade de acção que a Mala Voadora aplica ao texto. Não seguindo com absoluta fidelidade a narrativa do romance – “Não queríamos estar reduzidos ao livro”, argumentam –, aquilo que propõem é, segundo Capela, “uma espécie de laboratório em torno da sua obra genérica. "Para chegar ao teatro do Pirandello, partimos antes de um romance e seguimos uma abordagem nossa ao universo do escritor." Exemplo: quando Giovanni resolve parar em Roma, após um alongado périplo europeu que envergonharia o de Varoufakis, é finalmente questionado acerca da sua identidade por um grupo de “personagens aborrecidas, à espera de que alguém chegue para se apropriarem de uma história”. Esta orfandade de um texto e de um sentido evoca naturalmente Seis Personagens à Procura de Um Autor, obra maior da escrita dramatúrgica do autor italiano.

Vencido pelo interrogatório dessas personagens, Giovanni/Mattia/Albano vê-se de novo no caminho da recorrente alusão ao suicídio, como derradeira desistência da realidade. Só que aqui isso adquire um outro sentido: quando pensa em matar Giovanni, Mattia/Albano está a renunciar à ficção e a ser de novo cuspido para a sua realidade. Da qual, há quem diga, nunca chegou verdadeiramente a escapar.

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