O exótico Ocidente

Nós pelo olhar do estranho, num livro revelador de um dos princípios da viagem: o encontro com a diferença que ajuda a conferir identidade.

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Montesquieu publicou as suas Cartas Persas sob pseudónimo

No início do século XVIII, o barão de Montesquieu, nome pelo qual ficou conhecido Charles-Louis de Secondat (1689-1755), imaginou dois homens, persas, a viajarem pelo então centro do Ocidente, Paris, e a corresponderem-se — e com seus amigos no Oriente — sobre o que viam. Num tom satírico, e usando o Outro como referência, Montesquieu traça um retrato social, político e artístico da época que precedeu a Revolução Francesa, e fá-lo de um modo tão corrosivo quanto aparentemente ingénuo.

Rica e Usbek saem da Pérsia em 1711 e regressam em 1720. Ao longo desse período — que correspondeu ao tempo de escrita do livro —, são observadores atentos de uma realidade em tudo contrastante com a do seu quotidiano. “Eu e Rica talvez sejamos os primeiros persas que o desejo de saber levou a abandonarem o seu país, renunciando à paz de uma vida tranquila para irmos procurar laboriosamente a sabedoria”, escreve Usbek na primeira das cartas, antevendo críticas à decisão arriscada de deixar o seu vasto harém entregue a eunucos.

Rica, com uma costela mais filosófica, e Usbek, espectador do mundano, curioso acerca dos costumes, que descreve ao detalhe nas cartas que envia para a Pérsia, complementam-se. Assistem ao final do longo reinado de 72 anos de Luís XIV, em 1715, e à crise de sucessão que só terminaria em 1723, com a subida ao trono de Luís XV. “O reinado do falecido monarca foi tão longo que o fim fez esquecer o princípio”, lê-se numa carta de Usbek em 1718. Um ano antes, escrevia: “Não há país no mundo em que a riqueza seja mais inconstante do que neste. De dez em dez anos, acontecem revoluções que precipitam o rico na miséria e arrebatam rapidamente o pobre em grandes asas para os antípodas da riqueza. O pobre surpreende-se com a sua miséria; o rico com a abundância. O novo-rico admira a sageza da Providência; o pobre admira a cega fatalidade do destino.” E, numa nota comparativa sobre religiões, Rica sublinha: “Todas as religiões são embaraçosas quando se trata de fornecer uma ideia dos prazeres destinados aos que viveram bem. Os maldosos são facilmente aterrados por uma longa sucessão de punições com que os ameaçam: mas às pessoas virtuosas, ignora-se que promessas fazer. A natureza dos prazeres parece ser de curta duração; a imaginação tem dificuldade em representar os outros.”

Publicadas em 1721, sob pseudónimo, como romance epistolar, as Cartas Persas seriam a primeira obra de Montesquieu, antecedendo o Espírito das Leis (1748), e não demorou a que se tornassem um sucesso entre os eruditos da época. No prefácio à edição portuguesa recentemente publicada pela Tinta-da-China na sua colecção de viagens, Nuno Júdice lembra que foram feitas 30 edições ao longo da vida do autor, a última revista em 1754.

Escrito no presente, o livro reflecte não apenas sobre o que era a actualidade, num momento em que a França se precipitava para uma revolução histórica que mudaria o Ocidente, como é também demonstrativo de uma abertura de espírito — imaginar o que seria o Ocidente aos olhos de quem vive numa cultura diferente e o analisa a partir do pressuposto da estranheza, sem muitas complacências, indo da admiração à crítica através de inevitáveis comparações, mas movendo-se pela curiosidade e pela vontade de saber — que é exemplar na cultura do Iluminismo. E tudo isto assente numa trama que o leitor vê desenvolver-se através de uma troca de cartas entre vários intervenientes, assistindo a um desfilar de personagens e das suas angústias, de parábolas ancestrais, interrogações, paixões, alegrias e tristezas.

É a vida a acontecer numa década da existência de dois homens e de duas civilizações. No prefácio, Júdice fala de uma trama sustentada no “drama da ausência”. A narrativa dos viajantes, por um lado, e a de quem ficou e do que deixaram, por outro, deixam-se contaminar pelos modos de contar histórias orientais e ocidental — ou criam mesmo uma tradição, nomeadamente no modo de narrar o libertino, de que As Ligações Perigosas (1782), de Chordelos de Laclos, é um sucessor óbvio, e a que Júdice junta As Cartas Portuguesas, de Soror Mariana, outro romance epistolar, publicado ainda no século XVII (1669).

Ler hoje Cartas Persas é um exercício de uma tremenda e estranha actualidade, com Usbek, Rica e o homem que os criou — Montesquieu — a darem uma lição de abertura ao Ocidente e ao Oriente do século XXI. A reflexão sobre a barbárie a que conduz “a perda das artes” está ali, de um modernismo que não evitou muito do que aconteceu nos três séculos que se seguiram; a crítica aos que defendem a ignorância como modo de preservar poderes, também. Sobre a palavra divina, por exemplo, Rica conta que viaja com o “sagrado Alcorão”, mas admite que não desaprova “os que rejeitam” a virtude “atribuída a certas palavras”. Diz: “Os homens são muito infelizes! Pairam sem descanso entre falsas esperanças e temores ridículos: e, em vez de se apoiarem na razão, constroem monstros que os intimidam, ou fantasmas que os seduzem.” Escrito em 1720, por um dos homens que inspiraram a Revolução Francesa.

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