O espião que saiu do passado: George Smiley está de volta

A mais carismática personagem criada por John le Carré, o discreto George Smiley, espião e cavalheiro, regressa num novo romance a ser lançado em Setembro: A Legacy of Spies.

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George Smiley interpretado por Alec Guiness

Alegrai-vos, vós que já não tínheis paciência para os best-sellers de espionagem que os editores inventam ao ritmo de dois ou três por semana, e que começáveis mesmo a torcer o nariz às últimas obras do mestre, confessando aos vossos botões que um Le Carré sem George Smiley não é bem a mesma coisa. A Penguim Random House acaba de anunciar que o discreto espião e cavalheiro, a quem Le Carré há muito não incomodava na sua merecida reforma, e que, dada a sua idade avançada, estaria presumivelmente tão morto como os seus amados poetas alemães do século XVIII, vai regressar à vida num novo romance, intitulado A Legacy of Spies, que deverá ser lançado no próximo dia 7 de Setembro.

É claro que, tendo em conta o pouco que foi revelado, talvez regresse à vida já um bocadinho falecido, por assim dizer, mas sempre é melhor do que nada. O que se sabe ao certo é que o pupilo de Smiley, Peter Gilliam, peça-chave nos romances da chamada trilogia de Karla (o grande rival de Smiley, cérebro da espionagem soviética), é chamado aos serviços secretos britânicos, hoje dominados por gente sem nenhuma memória dos tempos da Guerra Fria, para justificar determinadas operações em que esteve envolvido. Um interrogatório que obriga o aposentado Gilliam a deixar a pacata propriedade rural onde vive e a mergulhar no passado, recordando as missões que desempenhou sob o comando de Smiley.

Garante a editora que John le Carré, “entrelaçando passado e presente, de modo a que cada um deles conte a sua própria e intensa história”, concebeu “um enredo tão engenhoso e emocionante” como os de O Espião que Saiu do Frio (The Spy Who Came in from the Cold, 1963) e A Toupeira (Tinker Tailor Soldier Spy, 1974), os dois romances anteriores aos quais este novo livro expressamente regressa.

O romancista terá começado a trabalhar no novo romance logo após ter publicado, no ano passado, o volume de memórias O Túnel de Pombos (The Pigeon Tunnel: Stories from My Life, 2016). “Ele é muito reservado com o seu trabalho e eu sabia muito pouco sobre o romance até ao dia em que ele entergou o manuscrito concluído”, contou a sua editora, Mary Mount, ao jornal Telegraph. Mas quando finalmente leu o original, Mount garante ter “encontrado um romance tão tenso, tão vivo, e com um enredo tão intrincado” como O Espião que Saiu do Frio.

“É espantoso o modo como Le Carré consegue entretecer passado e presente, jogando constantemente com o que sabemos e não sabemos e com o que as personagens sabem e não sabem”, elogia a editora, que a respeito do enredo adianta apenas que “os temas abordados não podiam ser mais oportunos”. Mas parece ter querido precisar um pouco a pista ao acrescentar que acabou de ler o manuscrito na véspera da eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América.

A antítese perfeita do 007

Embora Smiley surja logo na obra de estreia de Le Carré, Chamada para o Morto (Call for the Dead, 1961), e reapareça na segunda, Um Assassínio de Categoria (A Murder of Quality, 1962), é O Espião que Saiu do Frio, adaptado ao cinema em 1965 por Martin Ritt, com Richard Burton no papel do protagonista Alec Leamas, que consagra George Smiley. A sua personagem tem um papel relativamente secundário na trama, mas o leitor nunca mais a esquece. O que não deixa de ser paradoxal, porque, como observa uma velha amiga de Smiley, directora de um jornal de província, em Um Assassínio de Categoria, o espião era “o homem mais esquecível” que se poderia imaginar: “baixo e roliço, com óculos pesados e cabelo ralo, ele era à primeira vista o protótipo do solteirão falhado de meia-idade com um emprego sedentário”.

E em certo sentido, Smiley, sendo um espião brilhante, é também exactamente o que parece: um cavalheiro sossegado, com um percurso académico respeitável, que acha que vasculhar a vida e obra de um qualquer esquecidíssimo poeta alemão setecentista é sinónimo de uma tarde bem passada. A antítese perfeita do atlético e movimentado James Bond. E a simetria alarga-se ao terreno das conquistas amorosas, não apenas por Smiley não ser de todo um mulherengo, mas por se ter casado com uma aristocrata que colecciona “affaires” de forma quase tão desenvolta como o 007 de Ian Fleming.

Depois de O Espião que Saiu do Frio, em que Le Carré aborda a então ainda recente construção do Muro de Berlim, Smiley volta a aparecer num pequeno papel em A Grande Missão (The Looking Glass War, 1965), mas a sua consagração definitiva como a mais notável criatura de toda a literatura de espionagem ocorre já nos anos 70, com os três romances da trilogia de Karla, nos quais Smiley, com a ajuda de Peter Gilliam, identifica e denuncia a “toupeira” de que os soviéticos dispunham nos mais altos círculos dos serviços secretos britânicos e acaba por se confrontar com o seu arqui-rival, Karla, numa espécie de duelo de inteligências. Para muitos leitores, esses três livros – A Toupeira (1974), O Venerável Espião (The Honourable Schoolboy, 1977) e A Gente de Smiley (Smiley’s People, 1979) –  constituem o apogeu da obra de John Le Carré.

O primeiro e o terceiro volumes da trilogia foram adaptados à televisão numa célebre série da BBC, com um extraordinário Alec Guiness no papel de George Smiley. Antes disso, Rupert Davies e um actor tão brilhante como James Mason já tinham vestido a pele de Smiley (este último, em rigor, vestiu a de Charles Dobbs, já que a produtora foi obrigada a trocar o nome do protagonista, porque a Paramount tinha os direitos da personagem George Smiley), mas a única interpretação que pode comparar-se à de Guiness é a de Gary Oldman em A Toupeira (2011), de Tomas Alfredson.

O espião ainda regressaria uma última vez, já em clima de perestroika, no romance O Peregrino Secreto (The Secret Pilgrim, 1990). Mas ninguém lhe punha a vista em cima há mais de 25 anos, e este anunciado regresso é uma verdadeira surpresa, provavelmente também para o próprio Le Carré, que, numa entrevista dada ao jornal inglês The Guardian em 2000, diz a respeito da sua personagem: “Acho que o arrumei de vez”.

Na verdade, a única coisa que não surpreende neste regresso é ser um regresso, já que Smiley está sempre a regressar: em Chamada para o Morto ainda regressa da prateleira a que o tinham relegado, mas nos livros posteriores é sempre chamado a interromper a sua reforma e a regressar temporariamente ao serviço.

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