O espectador no centro do palco de Jacques Rancière

Foto

"O Espectador Emancipado", de Jacques Rancière, analisa sem condescendências a nossa relação com a arte e os sentidos que ela produz. Cinco ensaios em que o filósofo francês lembra que a responsabilidade de tornar essa aventura produtiva é do espectador

No início está sempre "a aventura do pensamento". É assim que o filósofo e ensaísta francês Jacques Ranciére nos explica o impulso que o leva a escrever. E o impulso que deveria estar na base do modo como olhamos para as obras artísticas. Só embarcando nessa aventura nó, espectadores, poderemos conseguir chegar lá, àquilo que ele apelida de "universos sensíveis".

Mas como identificar esses universos, e qual o papel que desempenhamos na sua construção?

É por aí que começamos a conversa com o autor de "O Espectador Emancipado", recentemente publicado em Portugal pelas Edições Orfeu Negro (tradução de José Miranda Justo), a propósito deste conjunto de cinco ensaios sobre a relação que estabelecemos com as imagens produzidas pelo que nos rodeia e, em particular, pelos objectos artísticos. "O que é interessante e importante não é o julgamento, mas a transformação das grelhas [de análise] perceptivas e as formas como por elas somos afectadas", diz, sugerindo que o que lhe interessa é o potencial especulativo das imagens, o modo como podemos relacioná-las, distinguindo, nelas e através delas, a realidade da qual partem.

A palavra-chave é sensibilidade. A partir dela, Rancière sugere modelos de construção de um mundo plural, interpelando a estética dominante, e activando a participação do espectador. É justamente a tomada de poder do espectador que está na base deste conjunto de ensaios apresentados em diferentes seminários entre 2004 e 2007. Rancière prossegue aqui uma crítica, iniciada em obras anteriores, à "democracia do consumidor egoísta" e "ao espectáculo fundado sobre a passividade do espectador". E fá-lo em resposta a um desafio: depois de ter lido um outro livro de Rancière, "O Mestre Ignorante", o performer e coreógrafo sueco Marten Spangberg (que em Portugal foi co-curador do programa Capitals, na Gulbenkian) incitou-o, na Academia de Verão de Frankfurt, a debruçar-se sobre a emancipação intelectual do cidadão comum. "Pediram-me que olhasse para o espectador emancipado como um enigma a resolver. Um texto é um desafio no sentido em que há qualquer coisa que me intriga. Por exemplo, o sentido destas duas palavras juntas: espectador e emancipado", explica Rancière ao Ípsilon.

No texto, Rancière defende que o espectador "tem capacidade para gerir as imagens produzidas, criando um regime que resista à dispersão, à neutralização, ou à composição". "Eu conto uma aventura intelectual antiga, onde esse paradoxo do mestre ignorante é aplicado como oxímoro para resolver o enigma do espectador emancipado. Debato-me com isso, enfrentando uma espécie de discurso dominante sobre o reino do espectáculo, onde se quer 'apanhar' o espectado", sublinha. Mas este livro não é um "um manual de emancipação", nem para o artista nem para o espectador. "O livro é feito para dizer que não estamos [só] num universo do espectacular, que é aquele a que todos se referem", continua. Nesse universo, o espectador não tem lugar. Mas se o entendermos não apenas como um sujeito passivo perante um objecto artístico a consumir (e a aplaudir), mas como alguém que pode fazer coisas (construir referências, por exemplo) a partir de um manancial de objectos artísticos, culturais, sociais e políticos, perceberemos que também há lugar para o espectador nesta palco. A emancipação não será, assim, um processo de renúncia, mas um processo de filtragem.

Dominar as imagens

O poder do espectador, argumenta Rancière, é sobretudo o poder de escolher entre "uma imagem dominante e uma outra construída a partir de relações individuais". "[Na criação artística], a questão não é a de representar o mais fielmente possível a realidade, mas a de representar uma certa cartografia do real que não o reproduza. Ou seja, passar de um regime de percepção para outro", explica. E dá o exemplo do cinema de Pedro Costa, sobre o qual escreveu no livro "Cem Mil Cigarros", também editado pela Orfeu Negro:  há nesse cinema, diz, "algo que não se baseia na significação mas na confrontação de materialidades". "A expressão imagens reais deve sempre aparecer entre aspas, tal como as palavras que definem realidade. Temos que saber fazê-las sair do seu estatuto normal de representação, em que prevalece o discurso da imagem da miséria, do dar a palavra aos imigrantes, aos sem-voz. O que a arte faz é mudar o estado material das imagens e o estatuto das palavras", resume.

Os textos reunidos neste volume percorrem diferentes temas; a uni-los, está uma avaliação da hierarquia de códigos e de valores que sustém a relação entre arte e recepção. Rancière defende que estamos a viver um período em que se diz estarem a desaparecer as fronteiras mas que, na verdade, aquilo a que assistimos é à substituição de uma ordem por outra.

Em "As desventuras do pensamento crítico", por exemplo, examina "algumas manifestações contemporâneas que ilustram nos domínios da arte, da politica e da teoria a inversão dos modos de descrição e de demonstração próprios da tradição crítica". E, em "Os paradoxos da arte política", sustenta que "para que a arte produza efeitos, é preciso renunciar a certos efeitos".

O que o autor procura provar é que "para que arte possa mudar de alguma forma o modo de apreensão sensível, é preciso renunciar a uma unidade, a uma doutrina, a uma moral; [é preciso] um corte". Esse corte, se não for produzido pela própria arte, deve ser activado pelo espectador, que não pode esperar dela uma proposta de organização do mundo.

Num outro ensaio, "A imagem intolerável", Rancière vai mais longe, permitindo-se analisar os limites da classificação, num quadro de reinterpretação da moral que se espera ver produzida pela arte. E questiona ainda o que pode levar a essa classificação, pressupondo que uma "imagem é declarada inapta para a critica da realidade porque releva do mesmo regime de visibilidade que essa realidade, a qual exibe alternadamente a sua face de aparência brilhante e o seu reverso de verdade sólida, compondo as duas coisas um único espectáculo".

Por fim, em "A imagem pensativa", questiona a aparente impossibilidade de uma imagem pensar, perguntando-se onde reside a passividade: se no objecto que está a ser visto, se em quem o vê.

Mundos alternativos

Ranciére esclarece que o que tenta dizer é que "não estamos no universo do espectáculo, onde todas as imagens se tornaram indiferentes". "Não podemos responder a isso ressacralizando as imagens, como fizeram Barthes para as artes visuais e Godard para o cinema. Devemos aprender a dominar as imagens. Elas são autónomas e podem fazer o mundo. Um mundo recomposto pelos indivíduos à sua maneira. Devemos saber que podemos escolher entre um mundo organizado por um consenso dominante e um outro onde há a possibilidade de mundos alternativos", resume.

"O que a arte pode fazer, eventualmente, é reenviar as pessoas para algo melhor, para uma visão mais sagaz e mais larga do mundo. O que a arte pode fazer é, de certa forma, mudar as hierarquias sensíveis do pensamento, dando as mesmas experiências a pessoas diferentes, que vivem em universos sensíveis muito diferentes. A teoria da arte moralizadora ruiu há dois séculos, mesmo se muitos continuam a acreditar na transformação da consciência das pessoas pela arte", diz.

Para Rancière, já não faz sentido esperar da arte uma nova ordem mundial. E para que, com a extinção desse papel, não se deite fora o potencial exploratório que só os espectadores podem produzir, o autor devolve-nos a responsabilidade: "O que quero dizer é que, hoje, não é uma obra que vai produzir um efeito. O que se produz é uma modificação da vida perceptiva, através da qual as pessoas podem ver outras realidades".

Sugerir correcção
Comentar