O desencantamento de um êxtase frustrado

Um concerto aquém do encantamento que o programa (com a estreia portuguesa do Concerto para Acordeão e Orquestra de Georges Aperghis, encomenda da Casa da Música) fazia antever.

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Georges Aperghis é o compositor residente da Casa da Música em 2016 NFACTOS / FERNANDO VELUDO

A estreia portuguesa do Concerto para Acordeão e Orquestra de Georges Aperghis e a interpretação do Poema do Êxtase de Alexander Scriabin eram à partida os principais atractivos do programa deste concerto, capazes de gerar uma elevada expectativa no público. Para além destas duas obras, o programa incluiu Pianissimo, de Alfred Schnittke, assinalando assim o quinto concerto de tributo ao compositor russo. Pianissimo é uma das mais importantes obras sinfónicas que o compositor produziu na década de 60, período em que procurava ir ao encontro das vanguardas ocidentais. Apesar de esta ser a mais curta e aparentemente a menos significativa obra do programa, foi a que provavelmente proporcionou a interpretação mais conseguida.

O Concerto para Acordeão e Orquestra de Aperghis, que marca a residência deste compositor na Casa da Música em 2016, resultou de uma encomenda conjunta da Casa da Música e do famoso festival Musica Viva da Bayerische Rundfunk, em Munique. Após ter sido estreado nesta cidade no passado mês de Fevereiro, o Concerto teve este sábado a sua primeira audição em Portugal. Tal como em Munique, o solista foi Teodoro Anzellotti, um dos mais experientes e conceituados acordeonistas da actualidade, cujo currículo conta com inúmeras estreias e gravações de obras de referência, de entre as quais se destaca a primeira gravação da Sequenza XIII de Luciano Berio em 1995. Como era expectável numa peça concertante, a partitura colocou o solista em diferentes planos de interacção com a orquestra e solicitou recursos técnicos e expressivos de evidente virtuosismo. Este ficou especialmente patente na agilidade e na sonoridade de Anzellotti, predominantemente brilhante e com um impressionante leque de intensidades. Após um início empolgante, sobretudo pela enérgica interacção solista-orquestra, o discurso musical foi gradualmente empobrecendo, caracterizando-se pela limitação de soluções de orquestração, de texturas e densidade sonora. No mesmo sentido, a partitura de Aperghis tirou pouco partido da diversidade de registos do acordeão. Também a intenção de fazer do órgão um duplo do acordeão nem sempre produziu o efeito esperado, principalmente pela exagerada diferença de intensidade entre os instrumentos. Provavelmente um tratamento mais subtil desta interessante ideia composicional, nomeadamente ao nível da escolha e da combinação de registos dos dois instrumentos, produziria um resultado mais convincente. Por estes motivos, a obra perdeu gradualmente o interesse que inicialmente prometia, valendo no entanto os desempenhos do solista e da orquestra, bem dirigidos por Peter Rundel.

Na segunda parte foi apresentado o Poema do Êxtase, uma das mais importantes obras sinfónicas de Alexander Scriabin. A interpretação revelou no entanto uma abordagem superficial à partitura, não deixando transparecer a voluptuosidade sonora e a intensidade dramática que marcam esta obra. Desde os primeiros compassos, a orquestra teve dificuldade em exprimir a suavidade, a doçura e a languidez solicitadas pela partitura de Scriabin, nomeadamente pela falta de fusão dos seus naipes. Por outro lado, Peter Rundel poderia ter conduzido de forma mais parcimoniosa os vários momentos climáticos que antecedem e preparam o arrebatado clímax final, contribuindo desse modo para uma expressão eficaz do sentido dramático da obra: o caminho da elevação espiritual que gradualmente conduz a um profundo e intenso êxtase. Dos diversos solistas a que a partitura recorre evidenciou-se com naturalidade Sérgio Pacheco, que de forma segura e eloquente assumiu o destaque que Scriabin dá ao primeiro trompete ao longo da obra.

Apesar de a OSPCdM contar com um grande número de excelentes músicos, é essencial que todos os seus elementos (músicos e naipes) desenvolvam um forte sentido de cumplicidade musical, de equilíbrio e de fusão sonora, caso contrário a interpretação de uma obra como o Poema do Êxtase revela-se frustrante para a orquestra e para o público. Um trabalho de naipe mais depurado, assim como uma direcção musical mais clara, serão estratégias a seguir.

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