O D. Maria II vai soprar em Avignon, pela mão de Tiago Rodrigues

Cristina Vidal, um dos dois últimos pontos a trabalhar em Portugal, será a figura central de Sopro, peça com que o director do teatro nacional responde ao desafio de apresentar uma nova criação no festival francês.

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MIGUEL MANSO

Se Tiago Rodrigues, ou qualquer outro encenador, quisesse hoje, num impulso de arqueologia teatral, remontar um texto tal como foi apresentado no Teatro Nacional D. Maria II em 1937, deslocar-se-ia à biblioteca-arquivo do teatro para encontrar como único registo as notas do ponto. Notas que documentam cada movimento de cada actor, todas as deixas, uma descrição e notações pormenorizadas de um espectáculo que desapareceu. A memória do teatro, acredita o director artístico do D. Maria II, reside em grande parte nesta figura em extinção dos teatros mundiais. O ponto, aquele que popularmente é conhecido como a figura cuja acção invisível deve valer ao actor ou à actriz em caso de o texto se lhe varrer da cabeça em palco, é o tema de uma nova criação de Tiago Rodrigues que se estreará nessa Meca do teatro contemporâneo que é o Festival de Avignon, em Julho próximo, chegando depois ao Teatro Nacional no Outono de 2017, na abertura da derradeira temporada do seu primeiro mandato.

Embora tenha voltado a assaltá-lo durante a preparação da reescrita das três tragédias gregas – Ifigénia, Agamémnon e Electra – com que marcou a sua entrada em pleno no D. Maria II, a ideia de colocar o ponto no centro de um espectáculo já habitava em Tiago Rodrigues desde 2010. Na altura em que foi pela primeira vez chamado a apresentar uma criação sua naquele teatro, Se Uma Janela se Abrisse, ficou fascinado com os pontos da casa, “com a ideia de que o seu trabalho é uma espécie de reserva da memória não apenas do texto, mas do próprio teatro”. A proposta de dedicar um texto ao lugar do ponto no teatro, e em particular a Cristina Vidal, que ali ocupa essas funções há mais de 25 anos, chegou a ser discutida e “esteve quase para avançar” no período em que Diogo Infante presidia aos destinos do Nacional. O choque entre Infante e a secretaria de Estado da Cultura em Novembro de 2010, perante a redução substancial do orçamento que lhe era atribuído, deitou o projecto por terra.

Até que o reencontro com Cristina Vidal e João Coelho, os dois pontos do Nacional, despertou novamente essa ideia deixada em prolongado repouso, e Tiago percebeu que queria avançar com o espectáculo antes que termine o seu mandato enquanto director artístico – o que acontece em Dezembro de 2017. Quando chegou o convite de Avignon para fazer uma nova criação para o festival, tornou-se claro que esse era o momento para avançar com uma criação que será suportada em 85 a 90% por vários teatros franceses co-produtores (Festival d’Avignon, Théâtre de la Bastille, Le Parvis - Scène Nationale Tarbes Pyrénées, Terres de Paroles - Seine Maritime - Normandie, ExtraPôle Provence-Alpes-Côte d’Azur), cabendo ao D. Maria II e ao Teatro Viriato (o único co-produtor nacional) uma pequena parcela do investimento. Em Avignon, será ainda apresentada uma encenação francesa (por Thomas Quillardet) de Tristeza e Alegria na Vida das Girafas, texto de Rodrigues estreado em 2011 na Culturgest; o dramaturgo e encenador português levou pela primeira vez o seu trabalho ao festival em 2015, com António e Cleópatra

Pontinhas dos dedos no palco

Quando Cristina Vidal, ainda em criança, foi pela primeira vez ao teatro, teve de ser obtida a autorização da actriz Laura Alves para que pudesse assistir a uma peça dirigida ao público adulto. A única forma era garantir que a pequena Cristina ficasse escondida dos olhares do restante público, pelo que a solução encontrada foi colocá-la na caixa do ponto. “Ela viu o espectáculo e conta o pormenor de que tinha as pontinhas dos dedos no palco, uma imagem que resume também esse lugar de fronteira onde está o ponto – quase no palco, ainda que não esteja, não estando também completamente nos bastidores”, relata Tiago Rodrigues ao PÚBLICO.

Será Cristina Vidal a ocupar o centro do palco em Sopro – assim se chama a peça que o autor começará a escrever entretanto –, uma protagonista “muito mais fácil de convencer” a passar da invisibilidade à visibilidade do que Tiago tinha antecipado (em palco estarão com ela os intérpretes Beatriz Brás, Isabel Abreu, João Pedro Vaz, Sofia Dias e Vitor Roriz). Talvez porque se tinham passado já sete anos desde a proposta inicial que o director do D. Maria lhe ia repetindo amiúde. “Não tenho a mínima dúvida de que há uma dimensão assustadora nisto, mas ao mesmo tempo aquilo que a Cristina vai fazer em palco é pontar”, descreve. “Vai fazer-se incidir a luz e o olhar sobre aquilo que já acontece há décadas. Através do espectáculo, apenas deslocamos o olhar do público para aquilo que não era visto. Na verdade, não é a Cristina que se coloca no centro, somos nós que a colocamos no centro com o nosso olhar.”

Sopro, explica Tiago Rodrigues, leva este título porque “o ponto é alguém que sopra o texto, mas ao mesmo tempo é também a personagem da família do teatro que é uma espécie de respiração do próprio edifício". E acrescenta: "Agora que a minha vida passa muito por viver num teatro, coisa que nunca tinha feito até há dois anos – passava a minha vida em muitos teatros mas não num teatro –, tem uma força particular poder falar daquilo que são os pulmões dessa família. Os gregos tinham essa noção de que a alma, o sentimento e a sensibilidade estavam nos pulmões – e não no coração.”

Quando Sopro fizer a sua estreia portuguesa, no final do ano, já deverá ser pública a continuação (ou não) de Tiago Rodrigues à frente do Teatro Nacional Dona Maria II por mais um mandato. Por enquanto, diz, decorrem conversações com o Ministério da Cultura tendo em vista um balanço do trabalho desenvolvido até aqui e a clarificação da sua eventual continuação no cargo até 2020. “Vivo em paz com a ideia de trabalhar como se fosse ficar para sempre, sabendo que o meu mandato dura três anos e que o desapego ao cargo é fundamental para que o trabalho seja bem realizado”.

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