O corpo é que paga

Arkadi Zaides viu centenas de horas da violência que é business as usual na Cisjordânia e fez o que acha ser o trabalho de qualquer israelita: pôr-se no lugar não do oprimido, mas do opressor. Archive, a lição que daí tirou como coreógrafo e bailarino, está no Alkantara.

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Em Archive, Arkadi Zaides confronta-se com imagens quotidianas da presença israelita nos territórios ocupados para mostrar até que ponto o conflito configurou toda uma linguagem corporal FOTOS: JEAN COUTURIER

Nablus, Cisjordânia, Novembro de 2009. Um grupo de colonos israelitas ataca a casa de uma família palestiniana enquanto, a uma distância que teoricamente é de segurança, uma mão agarra numa câmara de filmar e regista o que hão-de ser apenas mais umas imagens desfocadas de violência gratuita na Cisjordânia, business as usual tendo em conta o sangue que já jorrou e que há-de continuar a jorrar em cima da “situação” e do seu trágico, mas até ver imparável, acumulado de mortos e feridos. Agressões, gritos, a respiração ofegante da pessoa que agarra na câmara e continua a filmar, e assim sucessivamente: aqui não haverá sangue, nem nada que justifique uns míseros 15 segundos de fama no horário nobre. Se estamos a falar disto, na verdade, é apenas porque Arkadi Zaides, que nasceu em 1979 na Bielorússia mas chegou a Israel aos 11 anos e aí se tornou bailarino e coreógrafo, fez pause neste episódio da pequena história do conflito israelo-palestiniano e decidiu usá-lo para montar um statement sobre a forma como o corpo dele, e de todos os que vivem neste lugar onde o Médio Oriente se divide ao meio, está a pagar um preço demasiado alto pela ocupação.

“Sou israelita e vivo em Telavive. A Cisjordânia fica a 20 quilómetros”, explica para início de conversa nos primeiros minutos de Archive, a peça que estreou há dois anos no Festival de Avignon e que este fim-de-semana chega a Lisboa via Alkantara (domingo e segunda no São Luiz, às 21h). Logo a seguir, estamos em Nablus, mas não tanto como Arkadi, que com o controlo remoto fixa a imagem no lugar exacto onde quer pôr o seu corpo e reproduz o mais fielmente possível os movimentos de um dos colonos enraivecidos para mostrar que podia ser um deles – e que, no limite, olhando objectivamente para a forma como o país em que cresceu se impôs naquele território, é mesmo um deles.

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Eis então um artista israelita a pôr-se não no lugar do oprimido, mas no lugar do opressor – e a fazer-se, literalmente, carne para canhão de uma “situação” (sinistro eufemismo, como todos os que se usam para as doenças malignas) que não pode não estar a deformar o corpo e a cabeça de todas as gerações que ali nasceram, viveram e morreram desde 1948. É um lugar terrível, mesmo que a probabilidade de morrer nesse posto seja centenas de vezes inferior à de qualquer palestiniano confinado às fronteiras da Faixa de Gaza ou da Cisjordânia; um lugar em que os músculos estão sempre em tensão, alerta, à espera da primeira pedra, do próximo rocket ­– ou da ordem para atirar a matar. Num país onde o serviço militar não só é obrigatório como constitui talvez a mais inabalável forma de vinculação nacional, Arkadi Zaides tem necessariamente tudo a ver com isso: “Faço parte desta comunidade. Pago impostos, sou subsidiado, tenho responsabilidade pelo que se passa. E pergunto-me até que ponto esta situação prolongada de ocupação está a infiltrar o nosso corpo colectivo. Estamos a pagar o preço – físico e emocional – da soberania forçada sobre os palestinianos, do controlo que exercemos sobre os corpos dos outros, o tempo dos outros, o futuro dos outros”, diz ao Ípsilon em Santiago de Compostela, onde no final de Janeiro Archive atordoou, como sempre atordoa, o público do festival Escenas do Cambio (é o efeito daquela palavra infernal, “nazi”, naquele contexto infernal: pós-bíblico, pós-apocalíptico, pós-, outra palavra infernal, Holocausto).

Não apontar

Archive é a peça em que Arkadi Zaides quis estar pessoalmente nesse inferno diário. Por isso o vemos em Nablus, a atacar famílias palestinianas. Ou – uns quantos fast-forward depois – a patrulhar, de arma automática na mão, as ruas desertas do Hebron, onde cerca de 850 colonos vivem entre 250 mil palestinianos sob forte dispositivo militar; a espernear como um judeu ortodoxo obrigado a abandonar a casa ilegalmente construída em território ocupado; a aprender a atirar pedras como um adolescente dos colonatos; e a berrar como o miúdo de 12 anos, totalmente alcoolizado (as crianças podem beber vinho no Purim, uma das mais importantes festas do calendário judaico), que o pai arrasta pelo chão para o impedir de continuar a insultar os vizinhos palestinianos.

Não é, claro, um inferno que ele tenha realmente presenciado: para construir a peça, mergulhou durante um mês no acervo de mais de 4.500 horas de filmagens do B’Tselem, o Centro de Informação Israelita para os Direitos Humanos nos Territórios Ocupados que em 2007 distribuiu centenas de câmaras pelos palestinianos em zonas de alta tensão e de conflito declarado para que pudessem denunciar violações dos direitos humanos e expor a realidade diária da vida sob a ocupação. Daí extraiu os vídeos que manipula em tempo real em Archive, fazendo a imagem fixar-se, para as copiar, nas sequências que mais o impressionaram – as sequências que, argumenta Arkadi e só acreditamos porque já vimos, “podiam ser dança contemporânea” (e que com ele passam, efectivamente, a sê-lo).

Mas as imagens de Archive não foram escolhidas só “instintivamente”, em função do seu potencial performativo: a primeira regra, e a mais inviolável, foi que diante da câmara, filmados por anónimas mãos nervosas para memória futura, só estivessem cidadãos israelitas. Não por Arkadi não ter consciência de que a “situação” também está a deformar a linguagem corporal dos palestinianos, e a torná-los cada vez mais fluentes em certos movimentos esquivos e numa miserável gramática de auto-defesa (sendo que às vezes a melhor defesa é o ataque), mas porque seria “muito mais problemático em termos morais” um cidadão israelita usar esses materiais – e portanto “instrumentaliza-los”, palavras dele – num contexto que, apesar de tudo, está próximo do entretenimento. “No arquivo do B’Tselem também há imagens em que as câmaras estão viradas para os palestinianos – muitas. Foi uma decisão minha focar-me na linguagem corporal dos israelitas: um artista tem o dever de abordar a sua comunidade. O hábito é sempre apontar para o outro, e eu quis opor-me a esse hábito para questionar o que nos está a acontecer a nós, que dirigimos este sistema”, explica.

Uma luta

Sem que Arkadi quisesse, ao fim de 26 anos de vida em Israel o seu corpo tornou-se um “arquivo vivo” de movimentos, gestos, palavras e interjeições, uns mais infernais do que outros. Na peça que traz ao Alkantara, evitou os piores: não há violência extrema nos vídeos que activa em palco, porque essa é a que vemos todos os dias nos telejornais e ele quer operar a outro nível da relação com as imagens, o mais longe possível da saturação noticiosa. Mesmo assim, Archive tornou-se um alvo da extrema-direita israelita, com manifestações à porta quando se apresentou em Jerusalém e posteriores pressões (de resto bem-sucedidas) para que o Governo retirasse o apoio concedido à circulação internacional da peça – a instalação anterior, Capture Practice, que partia do mesmo acervo do B’Tselem, já tinha enfurecido uma parte da opinião pública, inflamando à sua escala a campanha do Ministério da Cultura para vigiar e punir os artistas que “denigrem” (sic) a imagem de Israel.

Arkadi, que pelo menos desde 2010 trabalha ostensivamente sobre o conflito israelo-palestiniano – “uma questão praticamente ignorada pela dança local” –, lamenta “a escalada veloz do nacionalismo” em Israel, mas não parece disposto a deixar de fazer as suas perguntas difíceis sobre como a violência configura um corpo colectivo. O perigo aqui, diz, não era o de acabar a demonizar Israel junto da comunidade internacional, mas o de acabar a dançar o que não pode nem deve ser dançado: “Às tantas tive medo de cair na armadilha de representar o conflito. Por isso foi tão claro para mim que as imagens tinham de estar no palco, para que não fosse possível evadirmo-nos do contexto. Sei que é uma luta desigual, que as imagens me ganham e são mais fortes do que eu – mas também que sei que posso pará-las quando preciso da tua atenção.”

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E sim, Arkadi Zaides pode parar as imagens – mesmo quando elas continuam em movimento, é impressionante o poder deste corpo transfigurado ao vivo pela tensão, pela ameaça e pela violência. Mas no final do dia, a milhares de quilómetros da Cisjordânia, ele continua a ser um bailarino, e o espectador continua a ser um espectador. Ou não: “As imagens dão-me uma tarefa muito clara, muito técnica, que me obriga a estar permanentemente em controlo. Não tenho tempo para viajar nem para sentir; por mais explosivo que seja o material, e eu sei que é explosivo, tenho de me agarrar ao movimento que estou a executar e de me concentrar na tensão que crio no espectador. Sou eu que estou entre ele e as imagens; tudo depende do que a minha presença tridimensional acrescenta à prática normal, estabelecida, do espectador que recebe imagens do conflito israelo-palestiniano diariamente pela TV.”

Para ele, há uma lição a tirar disto, e fica aqui escrita, para quem não puder ir vê-la a ganhar força em palco: “Quando viras a violência contra os outros, ela acaba por virar-se contra ti. Não podes oprimir alguém e não pagar o preço. É um círculo vicioso.” Também Archive. E não será de espantar se um dia esta guerra acabar assim: em transe.

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